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'O autor quer a alma da atriz, e eu quero a dele em troca', diz Laura Cardoso

Em depoimento à Folha, artista lembra peça 'Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu', que marcou sua carreira

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Laura Cardoso

Toda peça é especial para mim. Representar é minha vida desde meus 15 anos. Comecei no teatro em 1959, e veja bem minha sorte: dirigida pelo Antunes Filho, um dos maiores do mundo, com quem fiz também, décadas depois, "Vereda da Salvação". Acho que tenho a guarda dos deuses do teatro, porque só interpretei papéis bons na minha carreira.

Mas um espetáculo que me marcou demais foi "Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu" (1990). O texto era do Carlos Alberto Soffredini [1939-2001], um dos grandes autores do teatro brasileiro, que infelizmente já foi embora. Ele já tinha montado a peça uns anos antes, com a Escola de Arte Dramática, mas depois descobri que ele havia escrito o papel de Mãezinha para mim.

laura de braços abertos com dinheiro na mão
Laura Cardoso como Mãezinha na peça 'Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu', em 1991 - Divulgação

Quando um dramaturgo faz uma homenagem assim, é emocionante, porque ele identificou algo em você. Eu nunca sei dizer exatamente o que é, mas estou certa de que o autor quer a alma da atriz —e eu, em troca, quero a dele.

 

A história da peça é a de um grupo de circo. Eram atores interpretando atores, um palco dentro de outro palco, e minha personagem era a chefe da trupe, um papel totalmente maternal —o figurino, inclusive, deixava os seios enormes, como se estivessem à mostra.

Louca pelo filho, ela acaba traída por ele. O menino se apaixona por uma moça desgraçada que pede que, como prova de amor, o namorado lhe entregue o coração da mãe. Era uma tragédia grega, mas estavam ali bem misturadas a farsa, a comédia. Eu atribuo isso ao talento do diretor, Gabriel Villela, que passou a ser mais reconhecido com essa montagem.

Ele fez uma encenação belíssima, grandiosa e difícil de realizar. Gabriel tem muito respeito, em seu trabalho, pelas raízes brasileiras, pelo catolicismo e pelo misticismo. É extremamente cuidadoso com aquilo que os signos representam, e a cultura popular do circo está cheia deles.

A peça era repleta de canções —o título vem da música "Coração Materno", de Vicente Celestino. Tivemos muitas aulas para aprender a interpretá-las à moda circense. Não sou cantora, mas, como atriz, é preciso cantar, dançar e plantar bananeira.

Ficamos seis meses nos preparando, o que foi importantíssimo. Isso nos ajudou a entrar no mundo do circo —que passei a amar ainda mais— e trazer o público para ele. Incorporamos seus rituais, sua linguagem e suas práticas próprias. Tive que me virar até com malabares!

Isso é essencial para o bom trabalho do ator: levar um século dissecando a peça. Nem todo diretor permite isso, até porque há limitações de tempo e de produção. Mas, quando acontece, a diferença é enorme.

O grande diretor não quer que você decore o texto; até criança decora o ponto da aula de história. O importante é entender o personagem, encontrar verdade nele e entrar nas suas lembranças. Sempre defendi o método do Stanislávski, que prega a realização desse laboratório —quem diz que representar é fácil não sabe o que está falando.

A marca de um grande autor é construir no palco uma coisa real, em que as pessoas acreditem; daí o público embarca e retribui. Em "Vem Buscar-me...", foi marcante a intensidade da ovação que a plateia, enlouquecida, dedicava a todos. Era um elenco muito afinado, com Xuxa Lopes, Paulo Ivo, Claudio Fontana.

Por isso tenho memórias tão fortes desse espetáculo. Guardo até hoje a beleza da Mãezinha, de sua força, seu senso de proteção e seu amor imenso pelo filho —até ser morta e ter seu coração arrancado por ele.

Ainda me lembro com clareza das lembranças da personagem, como a de dar à luz em cima de um caminhão, embaixo de uma tempestade. Aquela peça tinha uma história muito simples, mas mexeu demais comigo. 


Laura Cardoso, 90, atriz há mais de 60 anos e vencedora de três prêmios Shell e quatro da APCA, termina nesta semana sua participação na novela “O Outro Lado do Paraíso”, da TV Globo.

Depoimento a Walter Porto.

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