Sob tensão da ditadura, artistas uniam clima sinistro a força criadora

Trabalhos de Antonio Dias, Rubens Gerchman e Geraldo de Barros integram exposição no Sesc Pinheiros

João Bandeira

[RESUMO] No ambiente opressivo do Brasil nos anos anteriores e subsequentes ao golpe de 1964, artistas produziram obras marcadas por ironia e ambivalência. Uma seleção de trabalhos da época integra exposição em cartaz no Sesc Pinheiros.

Em inícios dos anos 1960, Eric Hobsbawm esteve no Brasil visitando algumas cidades. Sobre São Paulo, registra: “Os arranha-céus brotam, as luzes de néon brilham, os carros (a maioria feita no Brasil) rasgam as ruas aos milhares, numa anarquia tipicamente brasileira. Sobretudo há uma indústria para absorver as 150 mil pessoas que a cada ano fluem para esta cidade gigantesca —nordestinos, japoneses, italianos, árabes, gregos”. 

Nota ainda que a industrialização “avança a todo vapor, mas impressiona a magreza de sua base. O mercado interno para a indústria brasileira é extremamente pobre: aqui até camisas e sapatos são vendidos a prazo”.

No relato da viagem, reproduzido em “Viva la Revolución” (Companhia das Letras, 2017), a capital paulista é contrastada com Recife, onde metade da população “vive nos barracos indescritíveis que cercam todas as grandes cidades sul-americanas, em meio ao cheiro característico das favelas tropicais: imundície e decomposição de matéria vegetal. Como vivem ninguém sabe”. 

Hobsbawm repara que, “ao mesmo tempo, há sinais de rebelião. As bancas de jornal estão repletas de literatura de esquerda: ‘Problemas da Paz e do Socialismo’, ‘China em Reconstrução’ e o jornal das Ligas Camponesas, que são fortes nessa região. (Mas há também uma abundância de Bíblias)”.

Os grandes contrastes percebidos pelo historiador entre o Sudeste, mais rico e industrializado, e as demais regiões do país eram, como hoje, reproduzidos no interior das suas maiores cidades, em ritmo acelerado de metropolização. Em primeiro lugar no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas também na jovem capital, Brasília, com suas vilas-satélite que acomodaram muito improvisadamente os operários e suas famílias, durante e depois de terminada a construção.

Esse é também um momento de inflexão de um processo em que hoje estamos completamente imersos, a convivência de antigos hábitos e signos da cultura popular urbana com a circulação cada vez mais ampliada de uma multifacetada iconografia da “cultura de massa” que ganhava sempre mais espaço, com o apoio do aparato publicitário, associando imagens a frases curtas e evocativas.

Em suma, o Brasil dos anos 1960, visitado não só pelo ainda pouco conhecido Hobsbawm mas também por personalidades mundialmente famosas e tão díspares como Che Guevara e Brigitte Bardot —embora nivelados como ícones de mesma relevância nos meios de comunicação—, é aquele que, em linhas gerais, se defronta com a impossibilidade de manter o ritmo de desenvolvimento à base de industrialização promovido nos anos JK.

São anos de grande turbulência, maior desde a renúncia de Jânio Quadros e durante todo o governo de João Goulart, atravessado por uma série de impasses políticos, crises militares, passeatas, greves e discursos inflamados à esquerda e à direita, compondo um quadro bastante polarizado, ainda que subdividido em opiniões significativamente diversas e sonoramente conflitantes. 

Até que, como diz a jornalista Ana Maria Bahiana em seu “Almanaque 1964” (Companhia das Letras, 2014), “duas palavras começam a se infiltrar em conversas, comentários, bastidores e imprensa: impeachment e golpe” —e esta última abate-se como fato na deposição de Jango pelo golpe civil-militar de 1964.

Sob a mão pesada do novo governo, o país passou a sofrer arrochos de tipo variado, fosse como refém de medidas econômicas drásticas, fosse da repressão política, cada vez mais violenta, contabilizando prisões ilegais, torturas e desaparecimentos, além da censura aos meios de comunicação e à produção cultural.

Nas artes plásticas, falava-se em uma nova vanguarda, a suceder as da arte concreta e neoconcreta, que adotaram e desdobraram a seu modo o ideário construtivo da arte moderna europeia e cujas últimas exposições de grupo ocorreram em 1960 e 61. 

A mostra “Nova Objetividade Brasileira”, no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM-RJ), em abril de 1967, é sempre lembrada quando se pensa em um panorama da autonomeada vanguarda do período.

Congregando artistas de proveniência diversa e até de movimentos conflitantes no passado, como concretismo e neoconcretismo, além de tendências muito amplas sob rótulos imprecisos como novo realismo ou nova figuração, boa parte da exposição acusava a crescente difusão da pop art norte-americana. 

Entretanto, os trabalhos conjugavam também outras forças. A mostra pode ser compreendida como resultante de impulsos e reacomodações na cena artística local (entre outros, a atuação de novas galerias em paralelo à produção emergente, as alianças entre artistas de diferentes gerações, a reação à moda da arte “informal” ou remanejamentos das poéticas construtivas), dados a público desde anos anteriores.

Entre as exposições coletivas mais relevantes do período estão as também sempre mencionadas “Opinião 65” e “Opinião 66”, no Rio, e seus congêneres paulistas, a mostra “Proposta 65” e o seminário “Proposta 66”. 

Nesses dois últimos eventos, Waldemar Cordeiro e Hélio Oiticica —egressos respectivamente dos grupos concreto e neoconcreto— apresentaram textos em que procuram parâmetros abrangentes para a definição de uma nova vanguarda, já fora do modelo das estritas plataformas de grupo da década de 1950. 

“Hoje as antinomias do conflito histórico abstracionismo versus figurativismo estão superadas. As pesquisas da linguagem visual deixaram de ser incompatíveis com a cultura de massa”, afirma Cordeiro em “Realismo ao nível da cultura de massa”. 

Em “Situação da vanguarda no Brasil”, Hélio diz que “não se trata mais de definições intelectuais seletivas: isto é figura, aquilo é pop, aquilo outro é realista —tudo isto é espúrio. O artista hoje usa o que quer, mais liberdade criativa não é possível”. 

Nesses textos ou mesmo naqueles em que, um pouco depois, apresentam juntos a Nova Objetividade, ambos indicam a ultrapassagem dos projetos de vanguarda em que atuaram. Mas mantêm linhas de continuidade com o que fizeram antes, diagnosticando e/ou propondo, além de outras coisas, a articulação entre vontade construtiva e apropriação de materiais e objetos preexistentes, bem como de signos da cultura em geral.

Fazendo, em 1966, um retrospecto a partir da produção dos artistas concretos e neoconcretos, o crítico Mario Pedrosa toca nessa articulação quando afirma que, “na fase do aprendizado e do exercício da ‘arte moderna’, a natural virtualidade, a extrema plasticidade da percepção, de novo explorada pelos artistas, era subordinada, disciplinada, contida pela exaltação, pela suprematização dos valores plásticos. Agora, nessa fase de arte na situação, (…) dá-se o inverso: os valores propriamente plásticos tendem a ser absorvidos na plasticidade das estruturas perceptivas e situacionais”.

Pode-se interpretar a reiteração da ideia de situação, nessa passagem de Pedrosa, como a percepção de que pelo menos alguns dos artistas que constituíram a arte concreta e a neoconcreta, assim como outros que chegaram à cena em inícios dos anos 1960, estavam deixando para trás a aposta numa determinada concepção de arte em consonância com os esforços e as expectativas de modernização do país, que procuravam, por assim dizer, desenhar positivamente o seu futuro, salvando-o dos onipresentes contrastes sociais do “subdesenvolvimento”. 

Dissolvida essa miragem pelo esgotamento da breve convergência de forças políticas conflitantes e das estratégias econômicas que sustentaram o desenvolvimentismo dos anos JK —cenário em que logo pôde se ouvir o ataque dos clarins da banda militar—, os artistas veem-se como que defrontados com a espessura no presente das velhas constantes nacionais, que aquelas apostas da década anterior não puderam desfazer. 

Não é à toa que o termo “realismo” aparece em muitos diagnósticos sobre a arte naquele momento. Entre esses artistas estavam o já experiente Geraldo de Barros (1923-1998) e os jovens Rubens Gerchman (1942-2008) e Antonio Dias (1944).

Algumas coisas em comum na formação desses três artistas e em atividades paralelas a seu trabalho de arte talvez colaborem para o relativo parentesco visual de sua produção de meados da década de 1960. 

Antes ainda de integrar o grupo Ruptura, que desenvolveu a arte concreta em São Paulo a partir de 1952, Geraldo foi um dos vários jovens de sua geração praticantes de uma pintura figurativa com distorções das formas e uso não naturalista da cor, tendência da época inspirada no expressionismo europeu. E, mais tarde, trabalhou com design gráfico, desenhando cartazes, logotipos e anúncios, especialmente para a Unilabor e a Hobjeto, as duas fábricas de móveis que fundou. 

Depois de longo período afastado de exposições, o artista voltou a mostrar obras em 1965. Figurativos, os novos quadros traziam uma mescla de pintura e colagem, utilizando impressos publicitários com cenas comuns no imaginário de filmes, telenovelas e revistas de variedades, sobretudo cenas de intimidade do casal moderno.

Como na época da arte concreta, Geraldo constrói jogos visuais com ênfase em relações entre fundo e figura por contrastes ou fusões, sugestões de complementaridade e de rebatimento simétrico de formas, ou mesmo a sua repetição.

Antonio, frequentador do ateliê livre de Oswaldo Goeldi, na Escola Nacional de Belas Artes, pôde ter contato com a linhagem expressionista. Depois de uma primeira exposição individual, em 1962, seu trabalho se modifica, o que fica patente em um novo grupo de obras mostradas dois anos mais tarde. 

Nas palavras do crítico Pierre Restany, “sua morfologia se inspira numa visão de facetas múltiplas”, contendo “sexo, sangue, ‘faits divers’ e muito fetichismo objetivo”. Tudo isso aparece como montagens em estruturas que remetem à decupagem das histórias em quadrinhos, mas também à formalização da arte concreta ou neoconcreta.

O próprio Gerchman, aluno de Adir Botelho, então assistente de Goeldi na mesma escola, apontou em entrevistas traços expressionistas no início de sua produção. E desde suas primeiras exposições, por volta de 1965, os trabalhos retratam os hábitos da população da grande cidade, contendo cenas apropriadas do universo da publicidade, das notícias de jornal, principalmente das páginas policiais, ou dos eventos midiáticos —como o jogo de futebol e o concurso de misses. 

Com especial atenção ao cotidiano das camadas mais pobres, àquilo que se passava prática e simbolicamente no subúrbio, a representação de pessoas e coisas segue uma espécie de estilização ‘naïf’, que investe nas distorções do “mau desenho” e muitas vezes no emprego de estruturas geométricas, em obras que Gerchman chama de “caixas”. 

Finalmente, Gerchman e Antonio também trabalharam com design gráfico. O primeiro nas revistas Manchete e Sétimo Céu, e o segundo desenhando, por exemplo, o logotipo e capas de livros da editora Tempo Brasileiro. 

Além disso, tiveram conhecimento dos princípios construtivos que estavam na base da arte concreta e neoconcreta, uma vez que presenciaram exposições de grupo de ambas as correntes no MAM-RJ, estabelecendo contato com alguns de seus artistas e acompanhando a discussão de seus trabalhos, que se desdobrou em novas formulações ao longo dos anos 1960.

Se ecoam traços expressionistas, as distorções figurativas nas obras dos três artistas são, no entanto, mais uma espécie de padrão sígnico, que incorpora certos elementos e alguma coisa da técnica dos sistemas de sinalização do ambiente urbano (por exemplo, o preto e amarelo, em Geraldo; as listras, em Gerchman e Antonio; as imagens-ícone recorrentes em cada um deles), colocando esses trabalhos muito mais próximos dos procedimentos do desenho gráfico e da caricatura do que propriamente das questões de pintura. 

Nessa formalização, estruturada em boa parte como colagem (que tem paralelos com a própria superfície da metrópole), emerge o grotesco, abrindo passagens entre o humano e o animalesco, o cotidiano e o fantástico-monstruoso. Isso é mais fortemente percebido em Antonio e Geraldo, mas está presente também em Gerchman. 

O que porventura parecer cômico provavelmente desperta menos o riso do que o sorriso inquieto, porque de tudo emana a familiaridade desconfortável daquilo que é, ao mesmo tempo, conhecido e estranho —incluindo coisas que permanecem no limiar do reconhecimento. 

E ainda mais se reaparecem em diferentes situações e escalas (como a estranha forma que poderia ser uma víscera, mão, genitália e até mancha de tinta, em diversos trabalhos de Antonio). 

Sob a chave da ironia, tudo é então atravessado por ambivalências. Na economia interna das obras de cada um dos artistas, na reiteração de situações e elementos entre uma e outra, ou nas suas referências externas, o grotesco é, por assim dizer, relacional.

As imagens apropriadas, transformadas, inventadas, remontadas constituem uma paródia da iconografia e das respectivas narrativas que encorpam a cultura de massa, colocando em jogo seus condicionamentos sociais, mas também seus aspectos democratizantes. 

O clima geral é, por um lado, um tanto sinistro e permite pensar, para além de uma ou outra remissão mais direta, em ligações profundas com o ambiente opressivo do país nos anos imediatamente anteriores e subsequentes ao golpe de 1964. 

Mas tudo o que nessas obras é insinuado ou explicitado, seja na crônica do lado sórdido da vida na grande cidade (em Gerchman principalmente), seja em termos de sexo, morte e fetichismo (mais em Antonio e Geraldo), seja envolvendo precariedade e violência, metamorfose ou repetição perversamente incessantes implica, ao mesmo tempo, uma grande vitalidade que mantém a tensão de forças inextricavelmente reunidas de fragmentação e construção, desfazimento e criação. 

Como já se disse de Gustave Flaubert —o desenhador obsessivo de frases exatas para vulgaridades demasiado humanas—, aqui estão em ação “a negatividade que não é a recusa, mas a hostilidade participante; não a rejeição, mas a interiorização polêmica; não a fuga, mas a inserção ofensiva; não o niilismo, mas a ironia lúcida e criativa” |1|. 

Filiar a produção de Antonio Dias, Rubens Gerchman e Geraldo de Barros nos anos 1960 diretamente à arte pop seria uma simplificação equivocada. Apesar das particularidades evidentes de cada um, seus trabalhos podem ser aproximados pela maneira hábil com que articulam o legado construtivo da arte concreta e neoconcreta da década precedente à apropriação fragmentada da iconografia da indústria cultural, que invadia cada vez mais o cotidiano da vida urbana. 

Tudo isso abarcado por transfigurações paródicas, nas quais as montagens e distorções não deixam de remeter àquela incontornável “parte obscura de nós mesmos”|2| e a tempos, similares aos de hoje, em que apreensão e resistência assaltam o idioma comum.

|1| Claude Duchet, citado por Elisabeth Roudinesco, em seu “A Parte Obscura de Nós Mesmos - uma História dos Perversos”, Zahar, 2008

|2| A expressão é de Elisabeth Roudinesco


João Bandeira, escritor, é autor de “Quem Quando Queira” (Cosac Naify, 2015) e curador das exposições “Decupagem – Iole de Freitas” e “Entre Construção e Apropriação – Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman nos anos 60”, de cujo catálogo o texto nesta página é uma adaptação.

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