Autor argentino escreve sobre viagem ao Uruguai em livro premiado; leia

'A Uruguaia', espécie de epopeia tragicômica de Pedro Mairal, tem lançamento pela Todavia em julho

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Pedro Mairal tradução Heloisa Jahn

[SOBRE O TEXTO] O trecho abaixo integra “A Uruguaia”, espécie de epopeia tragicômica sobre a busca pela felicidade, que tem lançamento pela Todavia em julho. O livro rendeu o prêmio Tigre Juan em 2017 ao autor argentino, que ganhou notoriedade com seu romance de estreia, “Una Noche con Sabrina Love”. 

pintura e colagem
Ilustração para Imaginação - Marcos Garuti

Você disse que eu falei dormindo. É a primeira coisa de que me lembro desta manhã. O despertador tocou às seis. Maiko tinha vindo para a nossa cama. Você me abraçou e a conversa foi cochichada, pertinho do ouvido, para não acordá-lo, mas acho que também para evitar falarmos de frente com o hálito noturno.

– Faço um café?

– Não, amor. Continuem dormindo.

– Você falou dormindo. Me assustou.

– O que eu falei?

– O mesmo da outra vez: "guerra".

– Que estranho.

Tomei banho, me vesti. Dei em vocês meu beijo de Judas. Um para você, outro para Maiko.

– Boa viagem – você disse.

– A gente se vê à noite.

– Vá com cuidado.

Peguei o elevador até o subsolo da garagem e saí. Ainda estava escuro. Dirigi sem pôr música. Desci pela Billinghurst, virei na Libertador. Já havia trânsito, principalmente por causa dos caminhões perto do porto. No estacionamento da Buquebus, um guarda me disse que não havia mais lugar. Tive que sair outra vez e deixar o carro num estacionamento do outro lado da avenida. A ideia não me agradou, porque à noite, quando eu voltasse com os dólares, ia ser obrigado a andar aquelas duas quadras escuras pela rua deserta.

Não havia fila no balcão do check-in. Mostrei o documento.

– O expresso para Colonia? – perguntou o funcionário.

– Isso. Depois o ônibus para Montevidéu.

– Volta no mesmo dia, pelo ferry direto?

– Isso.

– Certo... – disse ele, olhando para mim um pouco mais que o normal.

Imprimiu a passagem, que me entregou com um sorriso gélido. Evitei olhá-lo nos olhos. Me perturbou. Por que olhar para mim daquele jeito? Será que estavam separando e anotando numa lista as pessoas que iam e voltavam no mesmo dia?

Subi a escada rolante para o controle da alfândega. Passei a mochila pelo raio X, avancei pelo labirinto de cordas vazio. "Siga em frente", me disseram. O funcionário da Imigração conferiu o documento, a passagem. "Muito bem, Lucas, por favor, fique na frente da câmera. Perfeito. Comprima o polegar direito... Obrigado." Recolhi a passagem, o documento e entrei na sala de embarque.

As pessoas formavam uma longa fila. Pela janela, vi o ferry nas últimas manobras de atracação. Paguei o café e o croissant mais caros do mundo (um croissant grudento, um café radioativo) e devorei num minuto. Fui para o fim da fila e ouvi ao redor alguns casais brasileiros, alguns franceses e um ou outro sotaque do interior, do norte, talvez de Salta. Havia outros homens sozinhos, como eu; talvez também fossem passar o dia no Uruguai, a trabalho ou para buscar dinheiro.

A fila foi avançando, andei pelos corredores acarpetados e entrei no ferry. O salão grande, com todos aqueles assentos, parecia um cinema. Achei um lugar vazio perto da janela, sentei e te enviei a mensagem: "A bordo. Te amo". Olhei pela janela. O dia clareava. O quebra-mar se perdia numa neblina amarela.

Aí escrevi o e-mail que você encontrou mais tarde:

"Guerra, estou a caminho. Você pode às duas?"

Eu nunca deixava meu e-mail aberto. Nunca mesmo. Era muito muito cuidadoso com isso. Me tranquilizava saber que havia uma parte do meu cérebro que eu não dividia com você. Sentia necessidade do meu cone de sombra, da minha tranca na porta, da minha intimidade, nem que fosse só para ficar em silêncio. Essa coisa siamesa dos casais sempre me aterroriza: mesma opinião, mesmo prato, porre em dupla, como se os dois tivessem a mesma circulação sanguínea. Deve haver um resultado químico de nivelação, depois de anos mantendo essa coreografia constante. Mesmo lugar, mesmas rotinas, mesma alimentação, vida sexual simultânea, estímulos idênticos... temperatura, nível econômico, temores, incentivos, passeios, projetos – tudo coincidente. Que monstro bicéfalo vai se criando assim? Você fica simétrico ao outro, os metabolismos se sincronizam, é um funcionamento espelhado; um ser binário com um único desejo. E o filho chega para envolver esse abraço e soldá-los com um laço eterno. A ideia em si é pura asfixia.

Digo "a ideia" porque tenho a impressão de que nós dois lutamos contra isso, mesmo levados pela inércia. Meu corpo já não terminava na ponta dos meus dedos; continuava no seu. Um só corpo. Catalina deixou de existir, Lucas deixou de existir. O hermetismo furou, criou fissuras: eu falo dormindo, você lê meus e-mails... Em algumas regiões do Caribe os casais dão ao filho um nome composto pelos nomes dos pais. Se tivéssemos tido uma filha, ela poderia se chamar Lucalina, por exemplo, e Maiko, Catalucas. Esse o nome do monstro que você e eu formávamos quando nos derramávamos um no outro. Não gosto dessa ideia de amor. Preciso de um canto privado. Por que você foi olhar meus e-mails? Estava procurando alguma coisa para começar o confronto, para finalmente desfiar suas verdades? Eu nunca revistei seus e-mails. Sei muito bem que você deixava sua caixa de entrada sempre aberta, e por isso eu ficava curioso, mas nunca me passou pela cabeça ler suas coisas.

O ferry zarpou. O cais foi ficando para trás. Dava para ver um pedaço de litoral, mal se adivinhava o perfil dos edifícios. Senti um imenso alívio. Partir. Mesmo que por um período curto. Sair do país. O alto-falante transmitia as normas de segurança em espanhol, em português e em inglês. Um salva-vidas embaixo de cada assento. E pouco depois: "Informamos aos senhores passageiros que o free shop já está aberto". Que gênio o inventor dessa palavra, free shop. Quanto maiores as restrições impostas ao comércio, mais os argentinos gostam dessa palavra. Uma ideia estranha de liberdade.

Lá estava eu, viajando para contrabandear meu próprio dinheiro. Meu adiantamento sobre os direitos autorais. A grana que ia resolver tudo. Até minha depressão, meu isolamento e o grande "não" da dureza. Não posso porque não tenho dinheiro, não saio, não mando a carta, não imprimo o formulário, não vou me informar na agência, não solto os cachorros, não pinto as cadeiras, não conserto a infiltração, não mando o currículo – por quê? Porque não tenho dinheiro.

Abri a conta em Montevidéu em abril. Só agora, em setembro, chegavam os adiantamentos da Espanha e da Colômbia, de dois contratos de livros assinados meses antes. Se os dólares fossem transferidos para a Argentina, o banco os transformaria em pesos pelo câmbio oficial e eu teria de pagar imposto sobre os rendimentos. Se fosse buscá-los no Uruguai e os trouxesse em dinheiro vivo, poderia trocá-los em Buenos Aires no câmbio negro e ficaria com mais do que o dobro. Valia a pena a viagem, inclusive o risco de que na volta encontrassem os dólares quando eu passasse pela alfândega. Porque eu entraria no país com mais dólares que o permitido. 

pintura e colagem
Ilustração para Imaginação - Marcos Garuti

Pedro Mairal é romancista, poeta e contista argentino.

Heloisa Jahn, editora e tradutora, já verteu ao português livros de Borges e Ricardo Piglia.

Marcos Garuti é artista visual.

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