Em romances policiais, detetives funcionam como leitores de cidades

Realidade invadiu ficção na literatura noir contemporânea, afirma autor

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[RESUMO] A partir do novo romance policial de Leonardo Padura, com lançamento no Brasil previsto para outubro, autor argumenta que os detetives das histórias, no fundo, são leitores das características sociais das cidades em que atuam.

 

A certa altura de "La Transparencia del Tiempo", o mais recente romance de Leonardo Padura, o personagem Mario Conde sente-se na pele de um Philip Marlowe ou de um Sam Spade. E Havana, num passe de mágica, transforma-se em Bay City (a versão levemente ficcional de Santa Mônica nos livros de Raymond Chandler) ou na São Francisco de Dashiell Hammett.

A mágica, no caso, é o dinheiro. Recebendo em dólares para resolver um caso de roubo que descambou em assassinato, Conde dá-se o luxo de entrar num bar caro e privado, com ar-condicionado e todo tipo de bebidas destiladas expostas nas prateleiras: uísque, vodca, genebra e, claro, rum. O ex-polícia, que vive na informalidade, fazendo bicos como detetive particular, não resiste a algumas doses de Santiago Añejo.

padura
O escritor cubano Leonardo Padura - Alejandro Ernesto/EFE

Ao sair do bar e pagar a conta de 40 dólares (mais ou menos dois meses de salário médio de um trabalhador cubano), Conde recebe no rosto o bafo quente de setembro na ilha. Bem mais pobre e meio de porre, estava de volta às ruínas da Havana real.

A cidade é um presente dos deuses para o escritor de romances policiais. A química é tão perfeita e antiga quanto o gênero.

Surge antes de Conan Doyle e do famoso endereço (221b de Baker Street) no qual moravam quase maritalmente Sherlock Holmes e o doutor Watson.

É sintomático que para muitos leitores de hoje o fascínio das histórias de Holmes resida menos na decifração do enigma (que pode ser decepcionante) do que no passeio de época pela Londres vitoriana, "a enorme pocilga em que todos os vagabundos e desocupados do império desaguavam".

holmes vitoriano
Martin Freeman e Benedict Cumberbatch como Watson e Holmes em "Sherlock", série da BBC - Divulgação

Em meados dos anos 1920 e início dos 1930, as histórias policiais deixam as estufas, bibliotecas e casas de campo inglesas e ganham, de vez, as ruas. O detetive não pode mais viver numa poltrona. É preciso ter escritório no centro da cidade, frequentar os hotéis baratos e sujar os sapatos nos becos escuros.

Sem contar a elegância: o cenário fornece a oportunidade de usar chapéu, gabardine e, quem sabe, galochas. Atuando num tempo em que não havia leis antitabagistas, fuma-se à vontade. O policial clássico do período americano cheira a fumaça (não à toa, o Conde de Padura, à beira de completar 60 anos, continua a intoxicar-se com mata-ratos).

quatro pessoas com o falcão de madeira
Cena do filme "Relíquia Macabra", baseado em "O Falcão Maltês", de Dashiell Hammett. Da esq. para a dir., Humphrey Bogart (como o detetive Sam Spade), Peter Lorre, Mary Astor e Sidney Greenstreet. - Reprodução

Depois de Hammett e Chandler, você pode escolher um ponto no mapa segundo suas preferências. As coordenadas são múltiplas: a Paris de Georges Simenon; a Detroit e a Miami de Elmore Leonard; a Nova York de Lawrence Block; a Barcelona de Manuel Vázquez Montalbán; a Dublin de Benjamin Black; a Buenos Aires de Sergio Olguín; a Atenas de Petros Markaris; de novo Miami, a de Carl Hiaasen (o mais engraçado escritor de policiais da atualidade).

Ricardo Piglia dizia que o leitor é um detetive. Invertendo o axioma, o detetive torna-se também um leitor, mas de cidades.

A falsa impressão de que tudo no Rio está às claras, sob o sol, é desmentida pelas aventuras subterrâneas do delegado Espinosa, a criação de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Note-se que a trajetória do personagem acompanha o fluxo de crescimento urbano carioca: começa no Centro e se estabelece em Copacabana.

Em sua paródia da literatura noir, o romance "A Grande Arte" (1983), Rubem Fonseca mostra nas cenas iniciais o desmonte final da zona do Mangue, que abrigava moças de bocas pintadas, decotadas e debruçadas nas janelas. Como quem diz: a partir daqui, nada mais será o mesmo. No lugar da prostituição doméstica, entram a realidade ultraviolenta e o capitalismo corrupto.

Desde a primeira aparição de Mario Conde em "Passado Perfeito" (1991), Padura demonstrou a intenção de fazer uma crônica da vida cubana. O personagem recorre Havana e dá testemunho de como ela está se modificando física e moralmente, de como a situação se deteriora e muda a ponto de sentir-se estranho em sua própria cidade.

No crepuscular "La Transparencia del Tiempo", estamos em 2014, ano em que Barack Obama e Raúl Castro anunciaram a retomada das relações entre Estados Unidos e Cuba (a qual Donald Trump não levou adiante). Fora as incertezas políticas, o maior estrago é a trilha sonora: em todo lugar ouve-se reggaeton no volume máximo, uma tortura para quem no passado se acostumara a boleros e salsas.

La Transparencia del Tiempo

  • Preço US$ 18,95 (Amazon), 448 págs.
  • Autoria Leonardo Padura
  • Editora Tusquets
  • Lançamento no Brasil Em outubro pela Boitempo, com o título "A Transparência do Tempo"

O leitmotiv do romance, o nono tendo Conde como protagonista, é o desaparecimento de uma Virgem Negra, imagem tida como milagrosa que remonta a mitos do catolicismo na época das cruzadas.

A relíquia vale muito dinheiro para um grupo de pessoas que aprendeu a se dar bem nas frestas do regime socialista: os contrabandistas disfarçados de marchands que atuam no mercado negro das obras de arte. São os encarregados de escancarar a desigualdade e o contraste havanês, ostentando roupas de grife importadas e desfilando a bordo de Toyotas de 300 mil dólares.

Conde é contratado para encontrar a virgem e, no decorrer das investigações, adentra o submundo de migrantes internos, os chamados "palestinos", que, sem permissão para residir em Havana, vivem em pequenas favelas da periferia (em miséria semelhante à das nossas, mas ainda não tomadas pela barbárie dos narcomilicianos).

Fica evidente a homenagem de Padura ao "Falcão Maltês" (1930), de Hammett. Mas se o mestre gasta só uma página para explicar as origens da estátua, o cubano aproveita a técnica do "MacGuffin" para conferir densidade histórica à narrativa, com idas e voltas até o século 12. É a mesma estrutura de seu romance anterior, "Hereges" (2013), em torno do sumiço de um quadro de Rembrandt.

O que importa, no fundo, mais do que a fórmula policial, é a abordagem social. O atual êxito da literatura noir é uma evidência de que a linguagem, a partir da década de 1990, passou a ocupar um segundo plano. A realidade invadiu a ficção. A fabulação perdeu espaço para a comunicação e o conteúdo em relatos quase jornalísticos e documentais.

No campo que restou à experimentação, predomina hoje o fetiche íntimo do eu. O qual, nos piores exemplos, pode assumir o modelo da autoficção como um reality show de si mesmo.

Daí o desejo daqueles que optam por contar uma história com princípio, meio e fim de fazer da "sua" cidade a protagonista da trama detetivesca.

Antes de Leonardo Padura, ninguém retratara melhor Havana do que Guillermo Cabrera Infante. "Três Tristes Tigres" (1967) é um prodígio de radicalidade, na tentativa de "captar a voz humana em pleno voo", em especial a gíria noturna dos cabarés. Meio a sério, meio a brinca, Cabrera Infante dizia que o livro era... "um romance policial". 


Alvaro Costa e Silva, jornalista e colunista da Folha, é autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

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