Descrição de chapéu Memorabilia

Já imitava Jorge Ben antes de aprender solos dos Beatles, diz Samuel Rosa

Cantor lembra que composição de "É uma Partida de Futebol" foi fortemente influenciada por Ben Jor

Samuel Rosa

Nando Reis foi um dos primeiros artistas de sucesso a mostrar interesse pelo trabalho do Skank, em 1995. Numa conversa durante a gravação do programa "Rockgol", na antiga MTV, percebemos que nem a geração dele nem a minha, que estava ali começando, haviam ainda abordado o futebol com a devida importância em nenhuma canção.

Especialmente se comparado com gerações anteriores: Jorge Ben Jor, Chico Buarque, Milton Nascimento e Novos Baianos tinham esse tema como obrigatório. Para realizar esse reparo histórico, combinamos de fazer uma composição juntos.

Fui criado na pacata Belo Horizonte dos anos 60 e 70, onde ir ao Mineirão recém-inaugurado era umas das poucas opções de lazer nos finais de semana (afinal, lá não tem praia).

Justo depois da construção do estádio, os times de BH —não à toa— começaram a figurar entre os principais do país. O Cruzeiro e seu time de garotos, entre eles Tostão, Dirceu Lopes e Piazza, ganhou a Taça Brasil no ano do meu nascimento, em 1966, vencendo a final por 6 a 2 sobre nada menos que o todo-poderoso Santos de Pelé.

Não tinha como ser de outro jeito: cresci cruzeirense, e minha primeira camisa de futebol foi a número 8 do craque Tostão, que comandava aquele timaço.

Muito antes de pegar numa guitarra, eu já era um torcedor de arquibancada apaixonado. Nada mais óbvio do que um dia transformar essa paixão em música. E foi com Nando, a partir daquela conversa, que finalmente cheguei a "É uma Partida de Futebol".

A letra veio por fax quando já havíamos terminado as gravações do disco "Samba Poconé" (1996). Chegou aos 46 do segundo tempo. Prontamente li e gritei: "Parem as máquinas!"; fiz a música dentro do estúdio mesmo. Na tentativa de recriar o clima da torcida, o arranjo veio carregado de metais e percussão.

A canção, assim como boa parte da obra do início da carreira do Skank, se inspira na estética musical de Jorge Ben Jor. A sonoridade é distinta, claro, mas a intenção é semelhante.

Ben Jor criou uma universalidade única para a música brasileira. Misturando soul e rock, tornou seu samba adorado no mundo todo. Somos uma banda vira-lata e queríamos que nossa miscigenação ao menos se aproximasse do resultado perfeito que Jorge consegue em sua obra.

jorge e samuel abraçados
Os músicos Jorge Ben Jor (esq.) e Samuel Rosa antes do show "Nivea Viva Jorge Ben Jor", na praça Heróis da FEB, em SP - Greg Salibian - 25.jun.2017/Folhapress

Passei a infância e a adolescência escutando Ben Jor no rádio, em bares e em momentos de celebração; minha identificação com sua música foi instantânea. Antes mesmo de aprender os solos de George Harrison, dos Beatles, já tentava imitar a batida de Ben Jor na minha primeira guitarra Giannini.

Ele é um compositor intuitivo, muito mais rock 'n' roll do que várias bandas colocadas nessa prateleira. Além disso, eu tinha a sensação de que Jorge era tão torcedor quanto eu.

O Skank já tinha regravado "Cadê o Pênalti?", uma canção pouco óbvia dele, em nosso primeiro disco independente —a gravação contava com a participação de locutores esportivos de uma rádio bem popular de Belo Horizonte, que narravam um lance fictício.

Essa música, somada à presença obrigatória de "Fio Maravilha" nos nossos shows daquela época, acabou por trazer a atenção e simpatia do nosso ídolo. Posso dizer que, se o Skank fosse apontar um padrinho sem pestanejar, seria Jorge Ben Jor.

Se "Fio Maravilha" é uma homenagem a um (não dá para chamar de craque) centroavante meio grosso que fazia gol, "Partida de Futebol" retrata o deslumbramento de um cara como nós, que senta na arquibancada e contempla um jogo no campo.

Além disso, a levada da nossa música não desaguou na batucada —diferentemente de outras que falam do tema no Brasil. Tentamos um reggae mais acelerado, com batida eletrônica junto à bateria tocada aos moldes do que fez a banda francesa Mano Negra na música "Santa Maradona", sua ode ao craque argentino no disco "Casa Babylon".

Manu Chao, vocalista do Mano Negra, que participou de outras três faixas do "Samba Poconé" e estava no estúdio na época da gravação de "Partida de Futebol", chegou a dizer sobre o naipe de metais: "Acho que não funciona, não sinto clima de arquibancada nessa frase de trompetes".

Mas o que ele sabe? É francês, só ganhou uma Copa. E a frase virou uma espécie de refrão da música.

Depois do disco estourado no Brasil, no período pré-Mundial de 1998, fizemos uma intensa divulgação do nosso trabalho também na França, com ajuda do Manu, e "Partida de Futebol" era o carro-chefe. Ela acabou constando no disco oficial da Copa naquele país.

Em um episódio curioso, depois de tocar a canção num programa ao vivo de uma rádio em Paris, pedimos ao locutor que perguntasse ao público se sabiam sobre o que estávamos falando. Um rapaz francês respondeu: "Sendo vocês brasileiros e cantando com essa paixão, se não for mulher ou cerveja, é futebol".

Confesso que tivemos certo receio, durante essa época, de que o nome do Skank ficasse associado demais ao futebol. Em entrevistas, programas de TV, aonde quer que fôssemos, ao primeiro acorde da música, parecia obrigatório alguém jogar uma bola no palco na esperança de que fizéssemos alguma graça. Eu me sentia a própria foca de circo.

Aliviado, vejo que "Partida de Futebol" é, até hoje, uma das canções mais lembradas de forma espontânea pelo público quando o assunto é futebol, mesmo em período fora de Copas, assim como o bom samba que não é cantado só durante o Carnaval.


Samuel Rosa é vocalista, guitarrista e compositor do Skank.

Depoimento a Walter Porto.

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