Manuscrito de Freud faz leitura psicanalítica inédita da figura de Cristo

Texto feito em parceria com embaixador americano tem como pano de fundo o messianismo na política

Alexandre Socha

[RESUMO] Manuscrito de Freud traz leitura psicanalítica inédita do simbolismo da figura de Jesus Cristo, em texto que tem como pano de fundo o messianismo político.

O espólio de Sigmund Freud (1856-1939) parece às vezes inesgotável. De tempos em tempos surge algo até então desconhecido: rascunhos, cartas, passagens, apêndices etc. Tais achados despertam interesse por revelarem rastros da construção de um dos principais edifícios conceituais do século 20. Poucos, no entanto, são tão relevantes como o manuscrito encontrado pelo historiador Paul Roazen em 2004.

Em meio a uma série de documentos do embaixador americano William C. Bullitt (1891-1967), Roazen encontrou 24 páginas escritas em alemão gótico com a caligrafia de Freud, além de extensa missiva que comprova sua autoria.

Após publicação em diversas línguas, o texto aparece agora pela primeira vez em português, em edição bilíngue e traduzido diretamente do original pela psicanalista Elsa Vera Kunze Post Susemihl no livro "Manuscrito Inédito de 1931" (Blucher).

Por seu valor histórico, as páginas já teriam lugar garantido na estante freudiana, por trazerem novas evidências para um dos capítulos mais obscuros da produção de Freud: sua colaboração com o diplomata em um livro sobre Thomas Woodrow Wilson (1856-1924), 28º presidente dos Estados Unidos.

Manuscrito Inédito de 1931

  • Preço R$ 40 (120 págs., ed. bilíngue)
  • Autor Sigmund Freud
  • Editora Blucher
  • Tradução Elsa Vera Kunze Post Susemihl

A importância do manuscrito, porém, transcende esse contexto, entre outros motivos, por conter uma leitura psicanalítica inédita do simbolismo da figura de Jesus Cristo.

Sua origem remete à participação desastrosa de Wilson no fracasso do Tratado de Versalhes (1919). Embora proclamasse trazer à Europa a paz definitiva, o americano logo cedeu às exigências revanchistas dos países aliados na dissolução dos impérios centrais, criando condições para o surgimento de regimes totalitários e a eclosão da Segunda Guerra.

Em ensaio publicado no livro "O Momento Supremo", Stefan Zweig descreve as expectativas messiânicas que o encobriam: "Wilson, como outro Moisés, daria aos povos enlouquecidos pela guerra as tábuas de uma nova lei. Em poucas semanas seu nome havia adquirido um significado religioso, redentor".

Filho e neto de pastores presbiterianos, Wilson designava-se eleito por Deus para o cargo que ocupava. Acreditava-se em missão para salvar a humanidade, levando a paz perpétua a toda a Europa. Porém, nunca havia saído de seu país, não falava língua estrangeira e exibia um desconhecimento geográfico e político constrangedor.

Freud o comparava ao "deplorável benfeitor que quer devolver a visão a um paciente, mas não conhece a estrutura do olho e esqueceu-se de aprender os métodos cirúrgicos necessários".

Bullitt e Freud já contavam uma década de amizade quando, em 1930, o diplomata mencionou sua intenção de escrever um livro sobre o tema. Ele havia integrado a delegação americana na conferência de paz; foi um crítico contumaz do seu desenlace e, principalmente, do papel desempenhado por Wilson.

A proposta interessou Freud, e o fato de Bullitt possuir farta documentação e testemunhos diretos sobre um estadista de tamanho vulto no cenário mundial certamente soou atraente.

Em pouco tempo um primeiro esboço do livro foi elaborado. O projeto, entretanto, foi bruscamente interrompido quando Bullitt se recusou a incluir passagens escritas por Freud e a divergência virou impasse.

A retomada ocorreria anos mais tarde, durante o exílio do psicanalista em Londres. Adoecido e abatido por inúmeras perdas, ele aceitou a edição, com exclusão dos trechos controversos.

A publicação de "Thomas Woodrow Wilson: Um Estudo Psicológico" deu-se em 1966, alguns anos após a morte da viúva de Wilson, conforme havia sido acordado entre Bullitt e Freud à época da produção —já que a obra continha passagens que poderiam afetar sua vida pessoal.

Segundo pesquisas realizadas por Roazen e outros, o manuscrito encontrado em 2004 é justamente o texto de Freud recusado por Bullitt, destinado a ser o primeiro capítulo da obra sobre Wilson. Em comparação com a versão de 1966, são páginas inteiras suprimidas, além de numerosas alterações que deformaram a proposta original.

Não por acaso o livro foi recebido com reservas e cercado de desconfiança no meio psicanalítico. Levantaram-se dúvidas sobre a participação de Freud e sobre a natureza de sua colaboração. No entanto, o manuscrito de 1931 comprova que o psicanalista não estava tão alheio ao projeto quanto se pensou.

Nele, Freud oferece uma exposição clara de sua teoria, com um encadeamento sistemático de ideias e conceitos. O texto pode ser considerado uma boa introdução ao seu pensamento.

Preparando terreno para os capítulos seguintes (como enfatiza: um estudo psicológico, e não uma psicanálise de Wilson), o autor traça linhas gerais que convergem em uma investigação cuidadosa do complexo de Édipo, na qual relaciona conflito entre tendências masculinas e femininas, Jesus Cristo, cristianismo e homossexualidade.

Cabe lembrar que Freud se refere a componentes do psiquismo e da libido, não se reduzindo a mero determinismo biológico.

É provável que aí esteja o principal motivo para a divergência com Bullitt —cristão fervoroso e pouco propenso a polêmicas que afetassem sua carreira diplomática—, mas é preciso também cogitar alguma relutância do próprio Freud em ver tais ideias publicadas.

Embora já houvesse abordado inúmeras vezes o tema da religião, e até de modo mais contundente, o começo dos anos 30 era um momento particularmente delicado para atrair a antipatia católica. Freud esperava que a igreja, sua velha inimiga, pudesse barrar a barbárie que se aproximava. Como se sabe, a instituição nada pôde frente ao avanço nazista, que ironicamente trazia em suas bandeiras a inscrição "Gott mit uns" (Deus está conosco).

As reflexões do manuscrito de 1931, embora toquem na pedra fundamental do cristianismo, têm como pano de fundo o estudo sobre a personalidade de Thomas Woodrow Wilson. No interesse de Freud pelo presidente sobressai não tanto o caso clínico, mas a dimensão política e social que representou.

O livro escrito com Bullitt, em que pese seus muitos defeitos, pode ser lido como a tentativa de apreender o gradual enlouquecimento de um estadista em pleno exercício de suas funções, encenando suas neuroses num palco mundial.

A certeza de uma predestinação divina que caracteriza o messianismo político realça o sentimento de estar em posse da única verdade possível e de que seus atos são sempre corretos, visto que orientados por Deus.

O messianismo latente do "God Bless America" e a luta conflagrada entre bem e mal absolutos parecem se conjugar facilmente a um conservadorismo belicoso e à exaltação de uma figura autoritária, ainda que esta possa ser uma paródia de autoridade, como à que nos remete Donald Trump.

Talvez não precisemos olhar para o quintal do vizinho para enxergar tal fenômeno. Algumas ideias de Freud se prestam a transposições entre uma psicologia individual e uma psicologia das massas. Também aqui podemos tomá-las como um instrumental reflexivo para os diversos fanatismos de aspiração messiânica que vemos em nossa conjuntura política, cada vez mais carregada de ares evangélicos, bem como um antídoto aos fanatismos que habitam o foro íntimo de cada ser humano.

Algumas das concepções de Freud talvez tenham sido consideradas por Bullitt inconvenientes ou excessivas ao puritanismo do leitor americano de seu tempo. Frente ao que vivemos em nosso cenário político e cultural, resta saber como elas serão hoje recebidas. 


Alexandre Socha é psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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