Nos 70 anos de Israel, Gilberto Gil e Azulay defendem criação de Estado palestino

Ações bélicas de Tel Aviv impõem sofrimento inadmissível à população de Gaza e Cisjordânia, afirmam autores

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Jom Tob Azulay Gilberto Gil

[RESUMO]Autores defendem a criação de um Estado palestino para pôr fim à crise no Oriente Médio. Afirmam que o processo deve ser conduzido pela ONU, com participação ativa do Brasil, e sustentam que ações bélicas unilaterais por parte de Israel solapam a legitimidade de suas posições e impõem sofrimento inadmissível à população da faixa de Gaza e da Cisjordânia.

Gilberto Gil e Caetano Veloso em Susiya, na Cisjordânia, que visitaram em 2015. - Acervo Uns Produções

O Estado de Israel comemora 70 anos de existência. Sete indica fim de um ciclo e início de um novo. Mas, a julgar pelos quase 60 palestinos mortos em confronto com tropas israelenses na data do aniversário, o que ocorre é um trágico desenlace para as perspectivas de paz na região. 

É difícil aceitar que Israel, com tudo o que representou na Antiguidade e representa para o mundo moderno, passe à história como algoz de seus irmãos e vizinhos.

Seu ressurgimento marcou a primeira decisão importante da Organização da Nações Unidas, então recém-criada para eliminar o flagelo das guerras mundiais que ensanguentaram a primeira metade do século 20. Israel deveria ter simbolizado o início de uma era de paz para a humanidade.

Em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral da ONU reconheceu ao povo judeu o direito de retornar à Palestina, sua terra de origem. Reconhecia-se que, ao longo de dois milênios de exílio forçado, judeus foram alvo de perseguições sistemáticas e vítimas de racismo por meio de arraigados preconceitos e legislações que, até o século 19, os consideravam cidadãos de segunda classe. 

Com o advento do Holocausto e o martírio de 6 milhões de judeus, a criação de um “lar nacional”, que unificasse etnia, tradição, cultura e religião, constituiu aos olhos do mundo uma justa reparação pelo continuado genocídio cometido contra um povo que se encontra, paradoxalmente, na gênese da civilização ocidental.

Para nós, brasileiros, o evento adquiriu significação especial, pois o país teve papel decisivo na decisão histórica que daria surgimento ao Estado de Israel. Única nação latino-americana a participar com envio de tropas para o teatro de operações da Segunda Guerra Mundial —contribuição esquecida por muitos—, o Brasil deveria ter recebido um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. 

Contudo, foi-lhe oferecida, decerto como compensação, a prerrogativa de ocupar a presidência da Assembleia Geral que decidiria a chamada “partilha da Palestina” —que, além de um Estado para os judeus, previa também a criação de um Estado árabe que acolheria a população palestina ali residente. O papel foi exercido por Oswaldo Aranha, ex-chanceler de Getúlio Vargas que se notabilizou pelo empenho para que o Brasil declarasse guerra ao nazismo ao lado dos países aliados. 

É curioso observar que o Itamaraty instruiu a delegação brasileira a votar pela abstenção na questão da partilha. Tal posição se justificaria na medida em que, com comunidades árabe e judaica expressivas, não seria do interesse do país, a princípio, favorecer um dos lados em disputa no plenário da ONU. 

No entanto, o voto do Brasil, certamente influenciado pelo peso da atuação de Aranha, foi favorável à partilha. Outros 32 países —de um total de 56 membros presentes à Assembleia Geral— votaram no mesmo sentido, garantindo uma vitória com folga. 

Em 14 de maio de 1948, na declaração de independência do Estado de Israel, o primeiro-ministro David Ben-Gurion destacaria que “estendemos a mão para os nossos vizinhos árabes e palestinos para que vivam em paz conosco”. 

Os países árabes, todavia, rejeitaram a resolução da ONU, impedindo que os palestinos que ali viviam desde sempre (ainda que não desde tempos bíblicos) constituíssem seu próprio Estado. O impasse, que opôs os Estados Unidos à União Soviética, perdurou por toda a Guerra Fria, dando origem a um enfrentamento entre árabes e israelenses que se arrasta até hoje.

Com a radicalização de parte a parte, o conflito do Oriente Médio constitui atualmente o mais grave problema com que se defronta o mundo para a preservação da segurança e da paz internacionais. 
Duas culturas protagonizam um embate infundido de uma trágica contradição, já que, ironicamente, sob um mesmo Deus, árabes fariam parte da civilização ocidental tanto quanto cristãos e judeus. 

Aliás, a contribuição dos árabes para a formação do Ocidente durante a Idade Média constituiu, como se sabe, um capítulo à parte da história europeia. Tanto no campo militar quanto nas ciências, nas artes e na filosofia, eles representaram a cultura verdadeiramente superior do período. 

No século 16, expulsos —junto com os judeus— da Península Ibérica, refugiaram-se no norte da África, rompendo-se, em nome da cristandade, uma convivência de sete séculos entre cristãos, árabes e judeus, marcada por um fértil multiculturalismo. Os fantasmas dessa catástrofe, que alijou definitivamente os árabes do progresso do Ocidente, ainda assombram o mundo.

Por conseguinte, a criação de um Estado palestino, como previsto originalmente pela ONU, afigura-se como inadiável para que a crise do Oriente Médio se esvazie e encontre caminhos para a sua solução. 

É inevitável que esse processo ocorra como iniciativa da Organização das Nações Unidas, cuja crescente marginalização na tomada de decisões no cenário internacional é grave. Israel precisa se dar conta de que essa é a principal salvaguarda para preservá-lo de ações que poderiam pôr em risco sua sobrevivência como Estado soberano. 

O Estado israelense é fruto de uma decisão consensual da ONU. Opor-se à organização mundial implica enfraquecer-se perante o próprio sistema de concertação internacional que legitimou sua origem e sua existência. 

É visível que o recurso de Israel a ações unilaterais mormente bélicas solapa a legitimidade de suas posições. O sofrimento da população palestina, hoje, na faixa de Gaza e na Cisjordânia, com responsabilidade patente de Israel, é inadmissível. 

Aqueles que, em nome de defender Israel, fazem vista grossa à grave situação dos direitos humanos nos territórios árabes ocupados pelo Estado israelense esquecem que árabes e judeus estão historicamente fadados a viver juntos. As duas culturas se originam do mesmo tronco semita e se enriqueceram mutuamente ao longo dos séculos.

Eles esquecem que Maimônides, a mais importante personalidade do judaísmo depois de Moisés, viveu entre árabes e escreveu suas obras em árabe. É inconcebível imaginar um mundo árabe sem judeus, e vice-versa. As línguas oficiais de Israel são o hebraico e o árabe, e 20% de sua população é constituída de muçulmanos. O próprio Moisés era egípcio, o que foi demonstrado e analisado em profundidade por ninguém menos que Freud. 

A diplomacia brasileira sempre defendeu o multilateralismo como fundamento da ordem jurídica internacional. Ao Brasil, a partir do papel preponderante que desempenhou na decisão de partilha da Palestina, caberia agir junto a outros países-membros para desencadear o processo que leve à criação imediata de um Estado palestino e a internacionalização de Jerusalém, como dispôs a resolução 181 de 1947. 

“O Brasil, ao longo de sua história, soube construir espaços generosos e genuínos de convívio interétnico”, disse Antonio Risério. Ora, a política externa, como pensava San Tiago Dantas, deve ser uma projeção da política interna.

Nosso país, como já comprovado em mais de uma ocasião, tem vocação para desempenhar um papel protagonista no cenário internacional. Neste momento, em particular, quando a nação se prepara para enfrentar desafios inéditos que passarão a limpo contradições seculares da vida nacional, é preciso que a sua política externa receba a prioridade que lhe cabe no debate das alternativas em jogo. Não foi mero acidente o papel em que se viu investido Oswaldo Aranha.

Padre Antônio Vieira, estadista e diplomata, foi uma poderosa voz na defesa de Portugal quando este país procurava, no século 17, legitimar-se como nação soberana perante o império espanhol. “Se a pátria se derivasse da terra que é a mãe que nos cria, haveria de se chamar mátria”, ele dizia, relativizando a importância da terra —base física territorial— para o surgimento de uma nação. 

“Minha pátria é a língua portuguesa”, diria o poeta que no século 20 seguiu as pegadas de Vieira. É meramente alegórico, como há pouco ensinou o papa Francisco a respeito de Adão e Eva, que judeus tenham precedência sobre outros povos na Palestina. A herança histórica, sobretudo bíblica (pelo amor de Deus!), não se mede por hectares, prédios, monumentos, senão por patrimônios espirituais.

O legado moral foi a grande herança deixada pelos hebreus para a cultura do Ocidente, e os 70 anos do primeiro ciclo do retorno de Israel ao convívio das nações da Terra deveriam livrar a humanidade de seu maior pesadelo, com a conquista definitiva da paz no Oriente Médio.


Jom Tob Azulay é diplomata e cineasta.

Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura (2003-08), é cantor e compositor.

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