Novo livro de Julian Barnes trata de romance proibido nos anos 60; leia

'A Única História', do vencedor do Man Booker, trata da relação de um jovem com uma mulher casada e mais velha

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Julian Barnes tradução Léa Viveiros de Castro

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página integra “A Única História”, novo romance do vencedor do Man Booker Prize, que a Rocco lança neste mês. A obra trata do relacionamento duradouro entre um jovem e uma mulher casada, quase 30 anos mais velha, nos anos 1960. O romance é malvisto tanto pelas normas sociais dominantes quanto pela revolução sexual que se desenhava à época.

pintura de casal abraçado
Ilustração para Imaginação - Odyr Bernardi

Você prefere amar mais e sofrer mais, ou amar menos e sofrer menos? Para mim, esta é a única e verdadeira questão. 

Você pode observar —corretamente— que não se trata de uma pergunta de verdade. Porque não temos escolha. Se tivéssemos escolha, então existiria uma pergunta. Mas não temos, então não existe. Quem pode controlar o quanto ama? Se você consegue controlar, é porque não é amor. Eu não sei que nome dar a isso, mas não é amor. 

A maioria de nós só tem uma história para contar. Não estou dizendo que só acontece uma única coisa em nossas vidas: existem inúmeros acontecimentos, que nós transformamos em inúmeras histórias. Mas só uma importa, só uma vale a pena ser contada. Esta é a minha. 

Mas aqui está o primeiro problema. Se esta é a sua única história, então é uma história que você já contou e tornou a contar, mesmo que tenha sido —como é o caso aqui— principalmente para si mesmo. A questão então é: todas essas repetições nos levam para mais perto da verdade do que aconteceu, ou para mais longe? Não tenho certeza. Um teste poderia ser se, com o passar dos anos, você sai melhor ou pior na foto da sua história. Sair pior pode indicar que você está sendo mais verdadeiro. Por outro lado, há o perigo de ser retrospectivamente anti-heroico: apresentar-se como tendo se comportado pior do que realmente se comportou pode ser uma forma de autoelogio. Então eu vou ter que tomar cuidado. Bem, eu aprendi a ser cuidadoso ao longo dos anos. Tão cuidadoso agora quanto fui descuidado antes. Ou estou querendo dizer despreocupado? Uma palavra pode ter dois antônimos? 

O tempo, o lugar, o meio social? Não sei o quanto eles são importantes em histórias que falam de amor. Talvez antigamente, nos clássicos, onde há batalhas entre amor e dever, amor e religião, amor e família, amor e o Estado. Esta não é uma daquelas histórias. Mas, se você insiste. O tempo: mais de cinquenta anos atrás. O lugar: uns vinte e cinco quilômetros ao sul de Londres. O meio social: o chamado stockbroker belt, uma zona residencial afluente onde costumam morar os que trabalham no centro financeiro de Londres —não que eu tenha algum dia conhecido um corretor da Bolsa de Valores em todos os anos que passei lá. Casas isoladas umas das outras, algumas em estilo enxaimel, outras com fachadas de telhas. Cercas vivas de alfena, loureiro e faia. Ruas com valetas ainda não sobrecarregadas de faixas amarelas e vagas reservadas para moradores. Essa era uma época em que você podia ir de carro para Londres e estacionar em quase toda parte. Nossa específica área suburbana era conhecida pela meiga alcunha de “Village”, e décadas antes ela talvez pudesse ter sido mesmo considerada uma aldeia. Agora ela possuía uma estação de onde homens de terno iam a Londres de segunda a sexta, e alguns ainda para trabalhar em meio expediente no sábado. Havia um ponto de ônibus da Linha Verde; uma faixa de pedestres com sinal luminoso de luz intermitente; uma agência dos Correios; uma igreja batizada de forma nada original em homenagem a St. Michael; um pub, um armazém, uma farmácia, um cabeleireiro; um posto de gasolina que fazia consertos simples em automóveis. De manhã, você ouvia o barulho do motor elétrico dos carrinhos de leite —as opções eram o Express ou o United Dairies; à noite e nos fins de semana (nunca nas manhãs de domingo), o ruído do motor dos cortadores de grama a gasolina. 

Um críquete barulhento e incompetente era jogado no parque do Village; havia um campo de golfe e um clube de tênis. O solo era arenoso o suficiente para agradar aos jardineiros; o barro de Londres não chegava tão longe. Recentemente, tinham aberto uma delicatessen, que alguns acharam subversiva por oferecer artigos europeus: queijos defumados e linguiças cheias de nós, penduradas como paus de burro em suas telas de barbante. Mas as esposas mais jovens do Village estavam começando a cozinhar com mais audácia, e seus maridos geralmente aprovavam. Dos dois canais de TV disponíveis, a BBC era mais assistida do que a ITV, enquanto o álcool era bebido normalmente apenas nos fins de semana. A farmácia vendia curativos para verruga e xampu seco em pequenos frascos, mas não anticoncepcionais; o armazém vendia a insossa publicação local Advertiser & Gazette, mas nem mesmo a mais inocente revista masculina. Para brinquedos eróticos, você tinha que ir até Londres. Nada disso me incomodou durante a maior parte do tempo em que morei lá. 

Bom, com isto concluo meus deveres de corretor imobiliário (havia um de verdade a dezesseis quilômetros de distância). E uma outra coisa: não me pergunte sobre o clima. Eu não me lembro bem de como foi o clima ao longo de toda a minha vida. Na verdade, eu me lembro é de que o sol quente dava maior ímpeto ao sexo; que a neve súbita era deslumbrante, e que os dias frios e úmidos deram início aos primeiros sintomas que acabaram levando a uma prótese dupla de quadril. Mas nada de importante na minha vida jamais aconteceu durante uma condição meteorológica, e muito menos em consequência dela. Então, se você não se importar, a meteorologia não terá nenhum papel na minha história. Embora você possa deduzir que, quando me encontro jogando tênis numa quadra de grama, naquele momento não deve estar chovendo nem nevando. 

O clube de tênis: quem poderia imaginar que tudo começou lá? Na puberdade, eu via o lugar como simplesmente uma filial ao ar livre da ala jovem do Partido Conservador. Eu tinha uma raquete e um pouco de experiência, assim como era capaz de arremessar algumas bolas com efeito numa partida de críquete e funcionar como um goleiro de temperamento sólido, embora ocasionalmente imprudente. Eu era competitivo nos esportes sem ser muito talentoso. 

No final do meu primeiro ano na universidade, passei três meses em casa ostensiva e descaradamente entediado. Aqueles que têm essa mesma idade hoje irão achar difícil imaginar a dificuldade de comunicação que havia na época. A maioria dos meus amigos morava longe e —por alguma determinação não expressa, mas clara por parte dos meus pais— o uso do telefone era desencorajado. Uma carta, e depois uma carta em resposta. Tudo era lento, e solitário. 

Minha mãe, talvez na esperança de que eu conhecesse uma Christine loura e simpática, ou uma Virginia de cabelos pretos encaracolados e cheia de vida —em ambos os casos uma moça de tendências conservadoras confiáveis, mesmo que não muito pronunciadas—, sugeriu que eu entrasse para o clube de tênis. Ela se ofereceu até para me matricular. Eu ri sozinho da motivação dela: a última coisa que eu faria na vida era acabar no subúrbio com uma esposa que jogasse tênis e dois, quatro filhos, e vê-los, por sua vez, conhecer seus futuros cônjuges no clube, e assim por diante, seguindo por uma fileira repetitiva de espelhos até dar em um futuro interminável de cercas vivas. Quando aceitei a oferta da minha mãe foi por um espírito de pura ironia. 


Julian Barnes, escritor britânico, venceu o Man  Booker  Prize em 2011, por “O Sentido de um Fim”.

Léa Viveiros de Castro, tradutora há 35 anos, já verteu ao português Graham Greene e Margaret  Atwood.

Odyr Bernardi é pintor e quadrinista.

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