O arquiteto egípcio que se tornou referência por fazer casas para os pobres

Unesco deve lançar em breve projeto para salvar legado de Hassan Fathy

Diogo Bercito

[RESUMO] O egípcio Hassan Fathy (1900-89) projetou um vilarejo-modelo com edifícios de terra crua para uma comunidade miserável da região sul do país. A maioria das casas foi destruída, mas a Unesco deve lançar em breve um projeto de restauração para salvar o que restou do trabalho, que se tornou referência arquitetônica mundial.

 

Vende-se uma casa de adobe às margens do rio Nilo, na antiga necrópole de Tebas, com vista para os colossos erguidos pelo faraó Amenófis 3° em 1350 a.C. Dois andares, pátio e jardim por R$ 100 mil.

É uma das últimas construções originais do povoado de Nova Gurna, no sul do Egito, onde antes viviam os famigerados ladrões de sepultura do Vale dos Reis. A casa foi planejada nos anos 1940 por Hassan Fathy (1900-89), estudado mundo afora, inclusive no Brasil, como o "arquiteto dos pobres". Ele projetou 70 edifícios para o vilarejo-modelo, dos quais restam menos de 15.

Em 2010, a Unesco incluiu a vila em sua lista de patrimônio em risco e, neste ano, deve lançar um ambicioso projeto de restauração para salvar o que resta do legado. "Fathy era um arquiteto internacional, e isso é parte de sua herança", diz Tarek Waly, um de seus discípulos e o responsável pela futura reforma do vilarejo.

Nova Gurna foi um dos projetos arquitetônicos mais discutidos do início do século 20 e, ainda hoje, é um dos símbolos do Egito moderno.

Na época da construção, as autoridades locais tentavam proteger as poucas tumbas faraônicas que ainda não tinham sido saqueadas. Seu principal obstáculo eram os moradores da antiga Gurna, construída nas montanhas por uma tribo especializada no furto de antiguidades.

Naquelas décadas, a história do povoado de ladrões de múmias capturava a imaginação nacional de tal maneira que veio a se tornar enredo do clássico "A Noite de Contar os Anos", um filme lançado em 1969 pelo diretor Shadi Abdel Salam.

Considerado um dos principais longas egípcios, o filme acompanha a descoberta, pelo clã Abd al-Rasul, de uma tumba faraônica e a venda de seus valiosos artefatos. As autoridades são enviadas para investigar o comércio ilegal. Sempre ao som sombrio do vento, as cenas se parecem com aquelas vividas ainda hoje nesse empobrecido canto do Egito.

Nos anos 40, recém-independente do Reino Unido, o Egito decidiu destruir a vila de Gurna e deslocar a tribo de 7.000 pessoas para um novo vilarejo erguido no sopé da montanha. O projeto foi entregue ao promissor Fathy, que vinha seduzindo o governo com as suas promessas de construir casas mais eficientes, tradicionais e baratas.

Nascido em uma família aristocrática, o arquiteto queria devolver alguma dignidade aos paupérrimos camponeses egípcios, que conhecia apenas pelas espiadelas dadas através da janela do trem entre sua Alexandria natal e o Cairo. Ele relacionava suas casas, feitas de concreto em um estilo importado, ao futuro do país. Queria que a população retomasse as suas tradições e, assim, melhorasse de vida.

No livro "Arquitetura para os Pobres", publicado pela Edusp em 1980 (o original é de 1969), Fathy reclama que os arquitetos se dedicam apenas a projetos em série. Ele compara a profissão à de um médico, que faz cada operação individualmente: também assim deveria o arquiteto projetar casas.

"Se enfiar as famílias dentro de fileiras e mais fileiras de casas idênticas, então algo nessas famílias morrerá, principalmente se elas forem pobres", escreveu. "As pessoas se tornarão desinteressantes e desanimadas como as suas casas, e a imaginação delas murchará."

Em vez do concreto, Fathy preferia o adobe, uma mistura de terra, areia, palha e água. A técnica era tradicional na região e de baixo custo. No princípio ele penou para construir telhados, mas encontrou uma solução em um vilarejo de pedreiros nos entornos de Assuã, onde aprendeu a fazer cúpulas de adobe.

Os tijolos de terra crua tinham, para Fathy, diversas vantagens. Eram mais baratos do que o concreto e também vernaculares na arquitetura popular egípcia. Ademais, se pudesse ensinar os camponeses a construir com esse material, isto poderia lhes garantir mais autonomia —já não dependeriam mais do mercado de concreto ou dos trabalhadores especializados.

"Nenhum arquiteto faz projetos para camponeses e nenhum camponês pode jamais sonhar em contratar um arquiteto. O arquiteto trabalha para o homem rico e pensa em termos do que o homem rico pode pagar", escreveu Fathy. "Por isso, pensa automaticamente no concreto."

Apesar de seu entusiasmo, Fathy falhou. Em seu livro, ele reconheceu que o projeto não funcionou como esperava. Houve boicote por parte do próprio governo, que não entregou os fundos prometidos, algo que ele credita à corrupção. O que mais lhe surpreendeu, porém, foi que os próprios moradores se rebelaram.

Muitos se recusaram a deixar a antiga Gurna: seu único ofício era o roubo de tumbas e não queriam aprender a viver da terra, dependendo da cheia do rio. Parte do povoado se deslocou um pouco abaixo na montanha e vive, até hoje, em embate com as autoridades.

Outros não quiseram se mudar para a Nova Gurna porque não entendiam o projeto, diz à Folha Ahmad Abd al-Radi, 68, morador de uma das últimas casas de Fathy. Ele, que tinha dez anos quando se mudou para lá, conta: "Nós vivíamos nas montanhas, dentro de cavernas e tumbas faraônicas. Era uma vida difícil. Trazíamos água de uma fonte a dois quilômetros de distância em cima das nossas cabeças".

"Quando ele fez o novo vilarejo, diversos de nós nos recusamos a descer das montanhas. Pensávamos que fossem mausoléus", diz, sentado em um sofá embaixo de um retrato do arquiteto. O problema, explica, é que os moradores de Gurna estavam acostumados a pensar que casas com domos eram tumbas.

O formato os repeliu até 1968, conta Abd al-Radi. "Não porque mudamos de ideia, mas porque fomos forçados pelo governo a morar ali."

Ele mostra sua casa à reportagem: o interior está bastante fresco, apesar do calor de 41°C. São as paredes espessas de terra, explica, batendo em uma delas com o punho. Há também aberturas nas cúpulas do teto e janelas projetadas para escoar as escassas brisas.

Em seguida, ele monta em sua bicicleta, vestindo uma túnica tradicional, e pedala entre as últimas casas originais de Fathy. A maior parte está desabitada, como aquela com vista aos colossos: os donos moram no Cairo e voltam duas vezes por ano a passeio. Abd al-Radi serve de caseiro.

O vilarejo-modelo tem um quê melancólico, entre seus espaços abertos, vazios e amarronzados. Em outra casa, o chão está coberto de folhas secas. A mesquita, construída com elegantes linhas retas, tem cadeiras de plástico, mas nenhum fiel à vista durante aquela manhã.

Ainda assim, Abd al-Radi defende o projeto. Ele conta, por exemplo, que só com a construção de Nova Gurna é que foi à escola pela primeira vez. "Não havia classes deste lado do rio. Aprendi a comer o café da manhã e soube o que eram sapatos", afirma.

Diante de uma epidemia local de esquistossomose, um dedicado Fathy escreveu uma peça protagonizada por um demônio chamado Bill Harzia —papel que ele próprio encenou aos camponeses, vestindo uma máscara de gás.

Abd al-Radi discorda que o projeto não tenha funcionado: "Não é verdade. Prova disso é que o livro de Fathy é estudado em universidades de todo o mundo. Recebo telefonemas de professores que querem me visitar, conhecer o plano da casa."

No Brasil, o arquiteto egípcio circulou especialmente nos anos 1980, quando foi traduzido para português, conta Iazana Guizzo. Professora da Universidade Santa Úrsula (RJ) e fundadora do escritório Terceira Margem, Guizzo é uma entusiasta de Fathy e do tijolo de terra crua, que estudou em seu doutorado.

O egípcio, diz, é uma das principais referências para as construções sustentáveis. Apesar de ser menos citado hoje do que era há três décadas, ele ainda serve de norte em temas como habitação saudável e a relação de populações nativas com sua própria terra.

"Usando o adobe ou ainda outras técnicas de terra crua, como ele propunha, as pessoas podem construir suas próprias casas sem depender do cartel do cimento", diz Guizzo. "Ele subverteu toda uma lógica construtiva para as populações mais pobres a partir de um resgate do material."

A ideia de que o arquiteto deve projetar cada casa de maneira individual, levando em conta as particularidades da família, também poderia servir de exemplo ainda hoje, diz a brasileira. "No programa Minha Casa Minha Vida, o governo ergue casas de baixa qualidade e distantes dos centros urbanos, sem se adequar às necessidades dos moradores."

A terra crua ainda enfrenta resistência, seja no Egito, seja no Brasil. Nos dois países, as casas de adobe são relacionadas à pobreza e à baixa durabilidade. Os seguidores de Fathy, porém, contestam: dizem que o material é rico em tradição e que, se bem mantido, pode ser longevo.

No Brasil, um grupo de arquitetos e engenheiros defende a regulamentação do setor e aprovação de um marco técnico para regê-lo. Em outubro, se reunirão no congresso Terra Brasil, no Rio.

Em suas memórias, Fathy reconhece o fracasso da empreitada, mas faz uma última defesa apaixonada da ideia de que deveria haver outros "arquitetos dos pobres" no mundo.

"Não seria justo comigo ou com o meu país se eu deixasse esses princípios serem condenados porque essa tentativa específica falhou. Não se trata apenas de Gurna, mas de toda a esperança real de garantir um padrão de vida decente ao camponês." 


Diogo Bercito, mestre em estudos árabes, é correspondente da Folha em Madri e autor do blog Orientalíssimo.

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