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Bergman me fez acreditar que vida de artista era possível, diz Willem Dafoe

Em depoimento à Folha, ator indicado três vezes ao Oscar fala sobre impacto de "O Rosto" em sua carreira

Willem Dafoe

“O Rosto” (1958) foi o primeiro filme estrangeiro que vi. Foi em 1971, uns 12 anos depois do lançamento nos Estados Unidos. Eu tinha 16 anos e havia acabado de ser expulso do colégio por fazer o que a direção considerou um filme pornográfico (era apenas um trabalho transgressor) usando equipamento da escola.

Naquele momento, eu estava vadiando e frequentava o cineclube de uma universidade local. Foi lá que vi “O Rosto”, e assim nasceu meu interesse da vida toda nos filmes de Bergman —anos depois, em Nova York, como jovem ator, fiz até um curso intensivo de cinema, começando pela filmografia do diretor sueco.

Ainda que seja considerada uma obra de início de carreira e talvez não esteja entre os melhores de Bergman, “O Rosto” me formou de modo significativo. Não apenas por me apresentar ao cineasta mas também por me introduzir a certas temáticas, como o papel do artista na sociedade, que me acompanham desde então.

os três em sala
Lars Ekborg, Ingrid Thulin e Max von Sydow em cena de "O Rosto" (1958), de Ingmar Bergman - Reprodução

A carreira artística não era óbvia para mim. Cresci em Appleton, Wisconsin, um local de indústria papeleira com 50 mil habitantes. Uma cidade hostil no meio-oeste americano dos anos 1960, onde também nasceu o senador Joseph McCarthy (1908-1957) —a face mais visível do movimento anticomunista nos EUA. 

O medo do inexplicável, do místico e do invisível estavam muito presentes. A conformidade era uma virtude.

Mas havia algo mais na história da nossa cidade: Harry Houdini (1874-1926), o ilusionista nascido na Hungria, lá viveu quando menino, antes de se mudar para Nova York e ficar mundialmente famoso por seus números sensacionais de escapismo. 

Eu era um jovem ator, também praticante de mágica, um comunicador com o oculto, interessado em faz de conta —coisas que eu associava com ser um artista.

Não foi por acaso que “O Rosto” chamou a minha atenção: o filme traz Max von Sydow no papel de um mágico viajante cuja trupe é forçada pelas autoridades locais (céticos de mente científica, incluindo o chefe de polícia e o examinador médico, que querem expô-los como charlatães) a fazer uma amostra da performance antes de se apresentarem para o público geral.

Vogler, o personagem mudo de Von Sydow, era muito atraente para mim. Até mesmo sua profunda dúvida me tocava, pois eu sentia, mesmo adolescente, que essa é uma resposta natural à fé. Adicione a isso um pouco de viagem, mistério e uma assistente sexualmente livre —pronto, estou dentro!

Foi significativo para mim ter me identificado com a trupe fracassada da ralé, e não com os poderosos da sociedade. O filme tem um final ridiculamente feliz, no qual os sonhadores vencem seus perseguidores —e isso é tão bonito. 

Pode ser um pouco vergonhoso expressar esses sentimentos ingênuos hoje, mas eles foram fortes para mim naquela época e ainda ecoam.

“O Rosto” plantou em mim as sementes para acreditar que algum tipo de vida como artista era possível. Que os fracassos eram tão doces quanto os sucessos e que as autoridades nem sempre estavam certas ou eram dignas de confiança.

Naquele momento, eu não sabia o que iria fazer, só sentia o chamado de Nova York e dos autores de teatro que eu queria ver e com quem gostaria de trabalhar (The Performance Group, Richard Foreman, Robert Wilson).

Assistir a outros filmes de Bergman depois, sabendo como ele foi capaz de integrar seu trabalho em cinema e teatro e ainda manter uma trupe de colaboradores, tornou-se para mim um ótimo exemplo de uma vida realizada. 

Eu ainda tenho enorme interesse em seu trabalho. Durante as filmagens de “Manderlay” (2005), de Lars von Trier, na cidade sueca de Trollhattan, minha esposa e eu fizemos nosso próprio festival de Bergman em nosso quarto de hotel. Conseguimos vários filmes difíceis de encontrar nos EUA e, em todo momento em que eu não estava no set, nós dois estávamos na cama assistindo a filmes de Bergman.

Acabo de terminar uma filmagem —“The Lighthouse” (o farol), de um jovem diretor americano cujo deus cinematográfico é Bergman— que foi feita numa península pedregosa em Nova Scotia, sob condições climáticas, uma paisagem e um mar que me lembraram a ilha de Faro.   

Bergman teve um impacto enorme sobre mim e acredito que muitos artistas ao redor do mundo se sentem da mesma forma. 


Willem Dafoe é um ator norte-americano indicado três vezes ao Oscar.

Depoimento a Helen Beltrame-Linné

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