Biógrafo de Bergman explica como o sueco conquistou o mundo

Em artigo exclusivo para a Folha, Peter Cowie afirma que diretor captou o espírito de uma época

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Peter Cowie

[RESUMO] Autor de biografia clássica sobre Bergman explica como seus filmes alcançaram tamanho sucesso internacional.

 

Ainda que as bilheterias de Ingmar Bergman nunca tenham alcançado o nível de blockbusters de Hollywood, o diretor manteve públicos fiéis ao longo de toda a sua carreira e é considerado um mestre por cineastas como Spielberg, Scorsese, Stanley Kubrick e Woody Allen.

Outro sueco, Victor Sjöström, já havia posto seu país na vanguarda do cinema (mudo) no começo do século 20. No entanto, ele atendeu ao chamado de Hollywood, passando a produzir nos EUA. Isso Bergman não fez, o que torna ainda mais notável sua conquista dos cinemas de arte em todo o mundo: ele a obteve trabalhando na Suécia.

Para começar, o idioma sueco o impedia de penetrar no mercado cinematográfico convencional, da França e dos países anglo-saxões. 

Em segundo lugar, a indústria de cinema de seu país contava com um público potencial de menos de 10 milhões de pessoas, o que sempre significou orçamentos bastante reduzidos para produções nacionais.

Terceiro: jamais houve um sistema de estrelas de cinema na Escandinávia. Se Godard contou com Brigitte Bardot para alcançar maior audiência com “O Desprezo” e Fellini teve Marcello Mastroianni como trunfo, Bergman foi obrigado a montar um grupo próprio de atores talentosos

Dadas essas limitações, de que forma ele atingiu fama internacional?

Seu reconhecimento começou entre os críticos de cinema: “Um Barco para a Índia” (1947), seu terceiro filme, foi elogiado pelo influente crítico francês André Bazin. Anos depois, um Godard seduzido por “Monika e o Desejo” (1953) escreveu na revista Cahiers du Cinéma: “É o filme mais original do mais original dos diretores e está para o cinema atual assim como ‘O Nascimento de uma Nação’ está para o cinema clássico”.

Ao enaltecimento inicial seguiram-se ofertas de trabalho no exterior, mas Bergman resistiu ao canto da sereia dos estúdios de Los Angeles e de produtores da França, Alemanha, Itália e até mesmo da Rússia. 

Contrariando conselhos, Bergman permaneceu na Suécia, o que se provou uma decisão correta: o reconhecimento crítico continuou e, em 1956, ele conseguiu sua primeira inscrição na história do cinema mundial com um prêmio especial do júri do Festival de Cannes para “Sorrisos de uma Noite de Amor” (1955).

A partir daí, seu sucesso internacional é estrondoso. Ainda que já atuasse como diretor de cinema por mais de uma década, com 15 longas no currículo, pode-se argumentar com facilidade que a imortalidade de Bergman foi garantida por cinco títulos: “Sorrisos de uma Noite de Amor”, “O Sétimo Selo” (1957), “Morangos Silvestres” (1957), “O Rosto” (1958) e “A Fonte da Donzela” (1960). 

Se em 1956 ele brilhou com “Sorrisos...”, uma comédia romântica situada no início do século 20, em 1957 o sueco obteve o prêmio do júri em Cannes com a saga medieval do cavaleiro que joga xadrez com a morte. 

Em 1958, o drama de memória “Morangos Silvestres” venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim e, meses depois, o prêmio internacional da crítica em Veneza. 

Em 1959, “O Rosto” levou o prêmio especial do júri em Veneza e, no ano seguinte, “A Fonte da Donzela” ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro —feito que se repetiria com “Através de um Espelho” (1961), dando a Bergman a segunda estatueta consecutiva na categoria.

Além da produtividade do sueco e da proliferação de prêmios, outro fator auxiliou seu sucesso: a má distribuição internacional de seus filmes. Explico: como “Sorrisos...” e “O Sétimo Selo” não chegaram a muitos países antes de 1958, os públicos dos cinemas de arte ficaram com a impressão de que Bergman estava produzindo uma obra-prima por mês.

Em Nova York, por exemplo, “O Sétimo Selo” estreou em outubro de 1958 com críticas excelentes; apenas algumas semanas mais tarde, veio “Morangos Silvestres” —que, além das ótimas críticas, ainda registrou grande bilheteria. O sueco tinha conquistado a atenção do público.

Mas o verdadeiro motivo para Bergman ter se tornado uma divindade aos olhos de toda uma geração ultrapassa a questão mercadológica: seu trabalho capturava perfeitamente o zeitgeist. 

“O Sétimo Selo” emergiu no auge da Guerra Fria e mobilizou o medo da aniquilação nuclear iminente. Em “Luz de Inverno” (1963), isso é expresso de modo muito direto pelo personagem de Max von Sydow, que acredita que os chineses desenvolverão a bomba atômica e logo destruirão os valores arraigados de nossa civilização ocidental.

(Ironicamente, alguns desses temores renasceram no ano do centenário de Bergman —o medo das armas nucleares, a sensação de que, a despeito das maravilhosas realizações da ciência, há o perigo de que estejamos sendo controlados pelas autoridades e por empresas gigantes.)

O ambiente de liberdade sexual também foi captado por Bergman. Se “Monika e o Desejo” trazia poderosa carga libertadora e até mesmo nudez, “A Fonte da Donzela” veio para chocar, com o retrato explícito de um estupro nas florestas da Suécia medieval.

Mais tarde, “O Silêncio” (1963) mostraria o sexo de modo notavelmente franco e sensual, mantendo o diretor nas manchetes e despertando a ira da imprensa conservadora e dos censores em diversos países. E, claro, atraindo milhões de pessoas para ver o filme.

Outro tema recorrente naquela época foi o artista, retratado como subversivo e perigoso para a sociedade: da humilhação sofrida pelo palhaço em “Noites de Circo” (1953), passando por falas como “os atores podem dormir nos estábulos” em “Sorrisos...”, até a contraposição entre artista e autoridade em “O Rosto”. 

Tudo isso soava familiar e interessante para pessoas que cresceram no final da década de 1950 e no começo da de 1960, ensinadas a usar o terno cinzento da convenção e a valorizar mais a ordem que a inventividade.

A profunda revolução intelectual que surgiu no fim dos anos 50 também ajudou Bergman a se estabelecer. Os Beatles estavam para estourar e John Kennedy chegou à Casa Branca como uma rajada de ar fresco. Pela primeira vez desde a Segunda Guerra, a arte estava na moda. 

A nouvelle vague francesa, a ascensão de Fellini, Antonioni e Visconti na Itália, o cinema proletário britânico de Anderson e Schlesinger, Saura na Espanha, Cassavetes em Nova York: na Europa e nos EUA havia um clima de desfrute e diálogo sobre o cinema.

Também a incursão bem-sucedida de Bergman na televisão lhe rendeu uma nova audiência entre aqueles que estavam abandonando o cinema tradicional e preferiam ficar em casa e assistir a produções para a telinha. “Cenas de um Casamento”, uma minissérie veiculada durante seis semanas pela TV sueca, em 1973, valeu ao diretor reconhecimento em seu país e também foi exportada com grande sucesso.

Em 1976, porém, a situação parece mudar: o sueco é novamente capa da revista Time, mas dessa vez devido a problemas com o fisco em seu país. As acusações são superadas, mas ele se exila na Alemanha. O diretor continua atraindo a atenção de produtores pelo mundo, o que garante o financiamento de seus filmes, mas fica claro que o público de Bergman o estava abandonando.

Isto só deixa mais notável a sua retomada com “Fanny e Alexander” (1982). O projeto, que marca sua volta à Suécia com um orçamento imenso (US$ 6 milhões), poderia facilmente ter se tornado um desastre. Mas Bergman retomou seu prestígio com um filme que encantou o público de todo o mundo e registrou bilheteria de quase US$ 7 milhões só nos EUA, além de conquistar quatro Oscars.

Quando o entrevistei no set de filmagem de “Fanny e Alexander”, Bergman disse que queria parar: “Quero ficar em Faro, ler os livros que não li, descobrir coisas que ainda não descobri. Viver com minha mulher uma vida muito calma, muito segura, muito ociosa, pelo resto dos meus dias”. 

Nos anos seguintes, ele não cumpriu sua promessa de parar de trabalhar, e filmes como “Depois do Ensaio” (1984), “Na Presença de um Palhaço” (1997) e “Saraband” (2003) deixaram claro que produzir na Suécia sempre foi a escolha certa.

É inegável que foi o público internacional que deu a Bergman o reconhecimento e a visibilidade que ele nunca conquistou na sua própria terra, mas os poucos longas que produziu no exterior tiveram recepções mornas.

Todos esses fatores ajudam a explicar por que Bergman conquistou o mundo, mas a verdade é que seus filmes são celebrados até hoje porque não estão presos a um determinado tempo ou lugar: são tragédias e comédias humanas, filmadas e interpretadas com simplicidade clássica.


Peter Cowie, historiador britânico e autor de “Ingmar Bergman: A Critical  Biography”, foi diretor internacional da revista Variety.

Tradução de Paulo Migliacci.

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