Concentração de poder na política esvazia interesse pela vida democrática

Longe dos processos decisórios, brasileiros oscilam entre a servidão e a indisciplina, diz autor

Rafael Cariello

[RESUMO] Autor argumenta que a baixa adesão de parte dos brasileiros aos valores democráticos pode ser explicada pelas regras do jogo político no país. Ele afirma que, ao concentrar poder nas mãos de poucos, o sistema afasta os cidadãos e produz falta de compromisso com a coisa pública.

 

No "Romanceiro da Inconfidência", Cecília Meireles escreve que a liberdade, pela qual lutaram Tiradentes e os demais participantes da Conjuração Mineira de 1789, é uma palavra "que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda".

Em seu novo livro, "Ser Republicano no Brasil Colônia "" A História de uma Tradição Esquecida", a historiadora Heloisa Starling procura dar conta dessa missão aparentemente impossível ou desnecessária: explicar o que significava a ideia de liberdade para os colonos luso-brasileiros que participaram dos principais movimentos de questionamento do poder da coroa na América portuguesa no século 18 e começo do 19.

Havia uma tradição política ali, diz a professora da Universidade Federal de Minas Gerais, com valores e ideias que reapareciam em diferentes sublevações espalhadas no tempo e pelo território do que viria a ser o Brasil. Valores e ideias ainda relevantes, como a noção de que o poder deve ser dividido e compartilhado, de que seu exercício é uma tarefa coletiva.

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A professora Heloisa Starling (UFMG) na Flip 2015. - Zanone Fraissat/Folhapress

O inventário desses ideais é bem-vindo num momento de mal-estar político generalizado, em que os brasileiros se sentem alienados das decisões que lhes dizem respeito. E suscita questionamentos sobre o funcionamento da democracia no país, hoje.

Para muitos dos que se mobilizaram na sedição de 1710 em Olinda, nas conjurações tramadas décadas mais tarde em Minas, no Rio e na Bahia, bem como na revolução de 1817 em Pernambuco, a ideia de liberdade —de recusa da tirania e do poder desmesurado dos reis e da metrópole— articulava-se com a ideia de república —um substantivo que não significava ainda, ou não necessariamente, a substituição do monarca por um chefe de Estado com mandato de duração limitada, mas que evocava noções de autonomia, de poder local, "uma comunidade política soberana e autogovernada por seus cidadãos".

Starling documenta os usos que os luso-brasileiros fizeram da tradição republicana —que remonta à Antiguidade romana e ao Renascimento italiano—, concentrando-se num período de pouco mais de cem anos na colônia portuguesa.

O que ela reconstitui não é um conjunto de conceitos claros e articulados de maneira perfeitamente coerente, mas um repertório de ideias, às vezes fragmentário, que influenciou e foi influenciado por movimentos em que se expressavam interesses práticos dos colonos.

Fazia parte desse repertório a associação estreita entre os projetos de autonomia local das elites de Vila Rica (atual Ouro Preto, MG) ou de Olinda (PE), digamos, e a necessidade que essas mesmas elites sentiam de se porem a serviço de suas cidades, de cumprirem deveres cívicos —assim como, antes delas, haviam feito as famílias importantes de Lucca ou de Florença, na Itália.

O "ideal republicano de liberdade política", diz o historiador das ideias Quentin Skinner num artigo que tem justamente esse título, supõe a participação dos cidadãos na vida pública e o cultivo do espírito cívico.

Para observadores contemporâneos, isso pode parecer um paradoxo. Pois como poderíamos ser livres se ao mesmo tempo somos obrigados a nos ocupar dos negócios do Estado? Não seríamos mais livres se nos libertássemos inclusive dessas obrigações e serviços em relação à comunidade política?

Não para a tradição republicana, que supõe não existir liberdade fora dessa mesma comunidade, capaz de se contrapor a tiranos externos. Se não nos ocuparmos do seu governo, alguém se ocupará, e corremos o risco de sucumbir a alguma forma de tirania interna. A liberdade não é um dado. Ela precisa ser mantida, laboriosamente.

A república é um instrumento, uma ferramenta da liberdade. Para se manter livre, é preciso ter virtude cívica e participar do governo.

Starling identifica entre os conjurados mineiros esses valores da Renascença italiana, "de cumprimento das obrigações do cidadão para com a cidade". Havia, de resto, uma instituição política no mundo português que fundamentava esse sentimento: a câmara municipal, onde elites locais se viam representadas.

Ocorre que essa tradição que relacionava liberdade, autogoverno, participação cívica e comunidade política perdeu força no Brasil ao longo do século 19, afirma a historiadora.

A República, quando veio a ser desejada como alternativa à monarquia e depois proclamada, já tinha um sentido político bem mais restrito. Hoje, mais de um século depois da mudança de regime de 1889, num momento em que o Brasil vive "uma crise talvez sem precedentes na sua história", escreve Starling já no fim de seu livro, "a palavra 'República' continua soando oca; já não sabemos bem o que significa".

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Ilustração de capa da Ilustríssima - David Magila

Uma das maneiras de interpretar essa lacuna republicana é dizer que nos faltam os sentidos de comunidade política e de autogoverno.

É frágil, quando não inexistente, o sentimento de pertencimento dos brasileiros a uma mesma comunidade política, pela qual seríamos todos corresponsáveis. Há muitos indícios disso, dos mais hediondos aos mais prosaicos.

A atuação da polícia em favelas e bairros pobres é um deles: os agentes avançam como um exército em conflito com estrangeiros. Outro é o frequente desrespeito a normas impessoais, como filas e regras de trânsito, que deveriam organizar o convívio público. Um convívio que é marcado pela impressionante desconfiança que os brasileiros temos uns dos outros.

Segundo o World Values Survey, um projeto de pesquisa que compara crenças e valores em quase cem países, apenas 7% dos brasileiros concordam que "a maioria das pessoas é confiável" (incluindo as desconhecidas), contra 35% dos americanos, 45% dos alemães e 60% dos suecos.

Desconfiamos também dos valores democráticos, algo que talvez tenha se tornado mais evidente —e preocupante— com o surgimento de grupos que pedem intervenção militar. O sentimento, porém, não é recente.

Há anos o cientista político José Álvaro Moisés, da USP, chama a atenção para essa relação ambígua de parte da população brasileira com a democracia.

Foi o que fez num artigo publicado em 2008, "Cultura Política, Instituições e Democracia - Lições da Experiência Brasileira", no qual utilizou pesquisas realizadas pelo Latinobarômetro de 2002 a 2004.

Nelas, a maior parte dos entrevistados latino-americanos (53%) concordava que a democracia é o melhor sistema de governo e sempre preferível a regimes autoritários. No Brasil, em contrapartida, apenas 40% dos respondentes eram plenamente democratas, com uma maioria de cidadãos ambivalentes em relação aos valores democráticos.

Em levantamentos recentes do instituto, o Brasil figura como um dos países latino-americanos em que menos se apoia a democracia.

Embora sejam facilmente constatáveis, a desconfiança em relação aos valores democráticos, em parte da população, e o frágil sentimento de pertencimento a uma mesma comunidade política, de forma mais ampla, não são tão fáceis de explicar. Quais as razões dessa espécie de ceticismo generalizado?

Fica mais difícil compreendê-lo quando se considera que, desde meados do século passado, cada vez mais gente tem participado dos processos democráticos (em que pese a longa interrupção autoritária do regime militar). Em 1950, cerca de 40% das pessoas acima de 18 anos, apenas, estavam aptas a votar. Desde 1985, com a incorporação dos analfabetos ao contingente de eleitores, praticamente todos os adultos podem ir às urnas.

De resto, o regime político se tornou mais estável. Quando comparada ao período 1945-64, a democracia brasileira posterior à Constituição de 1988 conheceu um número menor de crises, de enfrentamentos e de impasses.

Já há algumas décadas a melhor ciência política nacional argumenta, convincentemente, que o sistema político brasileiro, bem ou mal, funciona: é previsível e proporciona governabilidade. De modo geral, e apesar da crise recente, presidentes eleitos conseguem formar maiorias no Congresso, aprovar boa parte de sua agenda e administrar o país.

Se a democracia se amplia e incorpora cidadãos e se o sistema político, apesar de todos os seus problemas, funciona melhor hoje do que no passado, por que persistem as desconfianças? Por que se pode dizer que a república parece oca?

Suspeito que isso se deva ao modo peculiar de organização e funcionamento do sistema político brasileiro. Ele proporciona governabilidade, é verdade, mas o custo desse bom funcionamento tem sido a concentração de poder em poucas mãos, mesmo depois da transição democrática; o esvaziamento de mecanismos de freios e contrapesos; a fragilidade dos laços entre representantes e representados. Embora democrático, o sistema político brasileiro é pouco republicano.

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Ilustração - David Magila

Em seu livro "A Democracia na América", baseado numa viagem de pesquisa aos EUA em 1831, o francês Alexis de Tocqueville faz o elogio, entre outras particularidades notáveis do Novo Mundo, da capacidade de autogoverno dos americanos.

Em contraste com a centralização administrativa da França, onde as decisões eram tomadas por políticos e funcionários distantes do dia a dia dos cidadãos e impostas ao conjunto da população, na América do Norte, dizia Tocqueville, as escolhas políticas relevantes para a vida das pessoas não aconteciam em Washington nem nas capitais estaduais, mas nos locais em que elas moravam, nas inúmeras pequenas cidades espalhadas pelo país.

O recolhimento de impostos, a vigilância policial, a construção de novas escolas e a demarcação de propriedades, por exemplo, eram atividades desempenhadas localmente por cidadãos eleitos regularmente para o exercício dessas funções. Um cidadão para cada função, e um novo grupo de cidadãos a cada vez, de modo que uma parte considerável da população se ocupasse, com alguma frequência, de um aspecto qualquer da coisa pública.

Um dos efeitos desse modelo institucional, que privilegia o envolvimento do maior número possível de pessoas, é cívico, nota Tocqueville. Os cidadãos percebem que participar da vida comunitária tem efeitos práticos. Vale a pena. Além de também lhes oferecer prazeres e experiências não desprezíveis, escreve o francês, como a possibilidade de exercer autoridade e desfrutar de reconhecimento público.

Pela prática compartilhada do poder, os cidadãos aprendem que trabalhar pelo bem comum é parte dos interesses particulares de cada um; que abrir mão de parcela do seu tempo para prestar um serviço público lhe trará o benefício de contar com a mesma atitude por parte de seu vizinho; que o interesse privado e o bem coletivo estão imbricados.

Nas cidades americanas, escreve Tocqueville, o indivíduo é livre: ele se associa e se submete às leis por perceber que isso é do seu interesse.

Em contrapartida, em Estados altamente centralizados —como em certos países da Europa, escreve o pensador francês—, importantes decisões são tomadas sem a concordância dos cidadãos e muitas vezes sem que eles tomem conhecimento delas. Não surpreende que terminem por se sentir descompromissados em relação à coisa pública.

Esses indivíduos não são senhores de suas próprias vidas, mas tampouco têm qualquer propensão a obedecer, escreve Tocqueville: acovardam-se, é verdade, diante do menor dos funcionários; mas dali a pouco serão capazes de desafiar a lei, com um espírito de rivalidade próprio de quem foi subjugado, assim que a desobediência se tornar possível. Vivem, assim, em perpétua oscilação "entre a servidão e a indisciplina".

Se algum editor acrescentasse a oscilação "entre a servidão e a indisciplina" à descrição que Sérgio Buarque de Holanda fez do homem cordial —segundo ele, um personagem social avesso ao ritualismo, às frias regras de etiqueta, às normas impessoais—, o livro "Raízes do Brasil" continuaria coerente.

A indisciplina é uma recusa da norma impessoal. A servidão é já uma relação em que os rituais, se houver, dependem dos caprichos do senhor. É profundamente pessoal —cordial, portanto.

Não é difícil para nós, brasileiros, nos identificarmos com a triste condição descrita por Tocqueville.

Os argumentos do autor de "A Democracia na América" ajudam a defender a ideia de que nossa frágil comunidade política, nossa desconfiança em relação aos demais cidadãos e, para uma fração da população brasileira, a desconfiança em relação à própria democracia derivam pelo menos em parte de nossas escolhas institucionais —entre elas, em particular, o modo como organizamos o sistema político.

Sem entrar no mérito das boas e velhas explicações para os comportamentos sociais brasileiros —a desigualdade econômica, o patrimonialismo ou os efeitos ainda presentes da escravidão—, vale a pena considerar, por um momento, quais incentivos estão sendo criados pelas regras do jogo democrático no Brasil, e como elas influenciam valores políticos e nosso comportamento cívico.

Refiro-me a regras como a centralização de recursos e decisões nas mãos da União, esvaziando a vida política nas cidades e estados, ou as características do sistema eleitoral que usamos para escolher deputados estaduais e federais, que enfraquecem os laços entre representantes e representados. Mas, por ora, talvez valha a pena nos concentrarmos nas relações entre Executivo e Legislativo desde a transição democrática.

No livro "Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional", os cientistas políticos Argelina Figueiredo e Fernando Limongi chamam a atenção para a "pouco notada continuidade legal entre o período autoritário", a ditadura militar de 1964 a 1985, e o regime político pós-redemocratização, "no que diz respeito às normas que regulam as relações" entre o presidente da República e o Congresso.

É a partir do alto, do Palácio do Planalto, que se organiza a definição da agenda e a aprovação de projetos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

"Essa preponderância legislativa do Executivo decorre diretamente da sua capacidade, garantida constitucionalmente, de controlar a agenda —o 'timing' e o conteúdo— dos trabalhos legislativos", escrevem.

"Os mecanismos constitucionais que ampliam os poderes legislativos do presidente —ou seja, a extensão da exclusividade de iniciativa, o poder de editar medidas provisórias com força de lei e a faculdade de solicitar urgência para os seus projetos—, estabelecidos pelas reformas constitucionais militares e ratificados pela Constituição de 1988", permitem ao chefe do Executivo definir a agenda legislativa, além de colocá-lo "em posição estratégica para a aprovação de seus projetos".

Não à toa, no Congresso brasileiro se aprovam mais frequentemente —e depressa— iniciativas do Executivo do que projetos provenientes de seus próprios integrantes.

Também no funcionamento da Câmara a ordem é estabelecida de cima para baixo. O controle exercido pelos líderes sobre a agenda dos trabalhos legislativos —poder assegurado pelo regimento interno— organiza os partidos e fornece "as bases para a estruturação das bancadas, garantindo a disciplina" dos seus integrantes, dizem Figueiredo e Limongi. Ou seja: os partidos funcionam —mas funcionam bem mais, e melhor, dentro do Congresso do que em relação à sociedade.

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Ilustração - David Magila

Figueiredo e Limongi estavam tentando mostrar que o sistema político brasileiro era capaz de produzir um governo eficaz, sem grandes indefinições ou bloqueios à sua atividade. Temia-se, durante a transição democrática, o contrário disso: que um regime presidencialista obrigado a conviver com um grande número de partidos no Legislativo pudesse gerar crises recorrentes e paralisia decisória. Não foi o que aconteceu.

Mesmo Michel Temer (MDB), com baixíssima aprovação popular e legitimidade contestada por forças políticas do país, fez avançar uma parte importante dos seus projetos.

Mas hoje o problema talvez seja outro: se é verdade que o sistema político brasileiro funciona —se bem ou mal leis e projetos são apresentados e aprovados, se o presidente é capaz de propor uma agenda ao país—, então qual é o preço que pagamos por essa ordem?

Os próprios autores de "Executivo e Legislativo..." já indicavam alguns desses custos, duas décadas atrás. A centralização de poder nas mãos do presidente da República e dos líderes partidários, eles diziam, tendia a alienar os próprios deputados do trabalho parlamentar cotidiano e das discussões que ali deveriam acontecer. "O grosso do trabalho legislativo independe da participação efetiva dos parlamentares", eles escrevem, "o que reduz os incentivos para sua participação".

Se boa parte dos nossos representantes se sentem alienados do processo democrático, o que dizer de nós, demais cidadãos, e dos incentivos que recebemos desse sistema?

O padrão se repete nos estados, onde a centralização de poder nas mãos do Executivo é ainda maior. A tal ponto que o cientista político Fernando Abrucio usa o termo "ultrapresidencialismo", em seu livro "Os Barões da Federação", para descrever a atuação dos governos estaduais.

Os freios e contrapesos que bem ou mal funcionam na esfera federal —entre eles o controle exercido pelo Judiciário e por órgãos como o Ministério Público— raramente chegam a limitar ou constranger a atuação dos governadores. A maioria das Assembleias Legislativas, por sua vez, serve com frequência apenas para confirmar os desejos palacianos estaduais, que contam com poderes institucionais semelhantes ao do Executivo federal.

Uma das explicações para essa hipertrofia do Executivo estadual está na grande dependência que os deputados estaduais têm dos governadores para serem reeleitos. O direcionamento de verbas e obras para o reduto eleitoral deste ou daquele político é muito importante para suas chances nas urnas.

Não surpreende que as Assembleias costumem ser quase sempre majoritariamente governistas, trocando votos por favores, emendas, recursos.

Quando a maioria esmagadora dos parlamentares se alinha por anos a fio às preferências do Poder Executivo, será que os seus eleitores estão sendo bem representados?

"As assembleias locais são para a liberdade o que a escola primária é para a ciência", diz Tocqueville. O poder local torna a liberdade acessível e rotineira para as pessoas, "ensinando-as a usá-la e a usufruí-la". Se temos a consciência de que nossa voz e nosso voto importam, então aceitamos as responsabilidades de lidar com a coisa pública, nos submetemos às leis —que são também nossas— e respeitamos os governos, tratando-os como legítimos.

Se esse é o caso, nossas escolas de democracia —nos três níveis da Federação— são tão frágeis quanto é o ensino público no Brasil. Uma hora essa conta tinha que chegar —e já faz pelo menos cinco anos, desde junho de 2013, que ela vem sendo apresentada aos brasileiros, em geral, e aos donos do poder, em particular.

Agora há quem se espante com a baixa adesão de parte dos brasileiros aos valores democráticos. Espantoso mesmo seria se todos os cidadãos aderissem com convicção a um regime que, na prática, parece fazer de tudo para mantê-los à distância. 


Rafael Cariello, graduado em história e mestre em antropologia social, é jornalista e roteirista no programa "Conversa com Bial".

David Magila é artista plástico.

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