'Eu fiz o papel de Ingmar Bergman em seus filmes', afirma Liv Ullmann

Em entrevista exclusiva à Folha, atriz fala de sua forte relação com o diretor

[RESUMO] Em entrevista à Folha, a atriz Liv Ullmann fala de sua forte ligação com Bergman, revela o maior arrependimento de sua carreira e diz que só agora começou a ler os textos do sueco.

liv e ingmar abraçados olhando para fora do campo
Liv Ullmann e Ingmar Bergman nos bastidores da filmagem de "A Hora do Lobo" (1968) - Bettman Archive

Existem muitos atores inevitavelmente associados a Ingmar Bergman, mas nenhum de forma mais marcante que Liv Ullmann. A atriz atuou em dez de seus filmes e foi escolhida para dirigir dois roteiros autobiográficos do sueco (“Conversações Privadas”, 1996, e “Infiel”, 2000). 

Certa vez, após Liv reclamar que Bergman era assunto frequente em suas conversas, o diretor respondeu: “Mas é claro, você é meu Stradivarius”, em referência à linha dos prestigiosos instrumentos musicais de qualidade incomparável.

Norueguesa nascida em 1938, Liv conheceu Ingmar em 1964 por intermédio da atriz Bibi Andersson, colaboradora de longa data do diretor. Um ano depois, as duas foram escaladas para estrelar "Persona" (1966); durante as filmagens na ilha de Faro, Liv e Ingmar se apaixonaram.

O relacionamento durou cinco anos e gerou muitos frutos. É sob efeito desse amor que Ingmar decidiu construir, na ilha, a casa onde viveria até sua morte. Os dois tiveram uma filha, Linn Ullmann, a nona e última do diretor.

A maior herança talvez esteja na filmografia que produziram juntos. Depois da primeira colaboração, Liv esteve em todas as maiores obras de Bergman, incluindo “A Hora do Lobo” (1968), “Gritos e Sussurros” (1972), “Cenas de um Casamento” (1973), “Sonata de Outono” (1978) e “Saraband” (2003). 

Há uma exceção, porém: o épico autobiográfico “Fanny e Alexander” (1982), lacuna que sempre causou estranhamento a qualquer bom conhecedor da obra do sueco. Em entrevista à Folha, a atriz comenta essa ausência, o maior arrependimento de sua carreira, e fala de sua forte ligação com Ingmar, que deu pitacos até no rascunho da autobiografia da atriz, "Mutações" (1976). 

liv com a mão no pescoço
A atriz e diretora norueguesa Liv Ullmann em foto de 2008, quando veio a São Paulo - Henrique Manreza/Folhapress

Você declarou recentemente que não assiste mais aos filmes de Bergman. Por quê? 

É raro eu rever um filme, porque acredito no impacto que ele deixa em você na primeira vez. 

O que aconteceu com os filmes de Ingmar foi que fiz uma adaptação teatral de “Conversações Privadas”, em 2016, e, por isso, voltei ao texto original. Fiquei encantada e comecei a ler outros escritos, roteiros de filmes dele que eu tinha. Estou impressionada com o incrível escritor que ele era.

É curioso que essa é a primeira vez que analiso seus textos, mesmo dos filmes em que atuei. Na época, eu estava muito preocupada com a produção, com a fotografia e, claro, com meu próprio papel. Eu não contemplava o texto. 

Hoje vejo que suas criações não são apenas as imagens incríveis, a direção de atores. Sua criação está muito na sua escrita. Fico muito feliz que agora no centenário ele também esteja sendo celebrado como autor: seus textos estão sendo descobertos por todo o mundo, em novas adaptações e encenações.

Você costuma dizer que, nos dez filmes de Bergman em que atuou, nunca fez papel da namorada ou da esposa, sempre foi protagonista. Por quê?

Isso se deve a Ingmar sentir que eu o reconhecia. Mesmo que jamais tenhamos discutido isso, eu muito frequentemente falava por ele. Se não tivéssemos começado a trabalhar juntos, os meus papéis seriam de Max von Sydow, Erland Josephson, e não de Bibi Andersson ou Ingrid Thulin.

Ingmar gostava da forma como eu sentia o que ele queria dizer e gostava de ouvir isso de mim, de eu ser Ingmar. Não em “Sonata de Outono”, em que Ingrid Bergman falou por ele; tampouco em “Cenas de um Casamento”, no qual falei por mim mesma. Mas, de modo geral, ele me permitiu ser Ingmar.

E “Fanny e Alexander”, por que você não está naquele filme? 

Eu sinto tanto, tanto por isso. É o maior arrependimento da minha carreira. Não sei o que estava acontecendo comigo naquela época. 

Por muito tempo, Ingmar me disse: “Estou escrevendo uma comédia para você, você vai finalmente fazer uma comédia”. Mas, quando ele enviou o roteiro de “Fanny e Alexander”, eu não li o filme como uma comédia. Disse a ele que já tínhamos feito muitos filmes pesados e que, em vez daquilo, eu faria um filme norueguês. Foi uma loucura. Aquele papel tinha tanto de mim, o que ela dizia, eu sei que era eu. 

Ele reescreveu o papel [da mãe dos personagens-título] para uma atriz mais jovem. Mas pessoas que viram o roteiro de filmagem me contaram que em várias páginas Ingmar escreveu “estou tão bravo com você, Liv”, “te odeio, Liv”. Porque eram cenas que ele sabia que eu iria entender. Foi a primeira e única vez na vida em que deixamos de ser amigos. Durou um ano e foi terrível. 

Sabemos que a história de Liv e Ingmar começou com “Persona”. Na pesquisa para uma exposição sobre o filme, encontrei uma foto inédita em que vocês dois estão sentados numa rocha, olhando para o oceano. Vejo aquela como a foto que capturou o momento em que vocês se apaixonaram. 

Eu quero chorar, porque essa é a verdade. Nós estávamos sentados naquele rochedo, que é um pouco afastado da casa onde filmamos “Persona”. E ele me disse: “Eu tive um sonho ontem à noite, era sobre eu e você, como estamos dolorosamente conectados”. E, sabe, é bom estar dolorosamente ligado a alguém. Ingmar e eu éramos parceiros. Não sexuais depois que eu me mudei, mas até a última noite da sua vida. 

No dia em que ele morreu, eu senti que tinha que ir para Faro, senti que alguma coisa estava acontecendo. Não havia ninguém lá, exceto a enfermeira que cuidava dele. Sentei ao seu lado, acho que ele já estava nos deixando. Não sei se ele sabia que era eu, no fundo acho que sim. Sentei ali segurando sua mão, ele segurou a minha e eu disse: “Você chamou por mim, não chamou?” —como naquela cena em “Saraband”, em que vou visitar o ex-marido e ele pergunta: “Por que você veio?”. 

Naquela mesma noite, depois que eu saí, ele morreu.

Quando eu digo que estava lá e que ninguém veio depois de mim, isso é verdade, mas é muito importante para mim dizer que eu não estava lá só por mim. Estava lá por todas as pessoas para quem ele já foi importante, pessoas que trabalharam para ele, seus filhos, todo mundo. Não era eu, éramos nós.

​​​​Faz quase 11 anos que ele morreu e você sente falta dele. E enquanto ele estava vivo? A relação de vocês mudou a partir da separação em 1970. 

Eu nunca senti falta dele enquanto estava vivo, de forma alguma. Eu o tinha, podia ligar para ele. Havia duas pessoas para quem eu podia ligar em minha vida: Bibi Andersson e Ingmar. Podia ligar quando estava triste, sozinha, quando sentia um vazio, ou então quando tinha uma fofoca maravilhosa! Eu sabia que eles estavam sempre ali, a uma ligação de distância. E nós não éramos digitais, eles teriam odiado esse mundo, onde todos mandam email. Hoje não adiantaria se esconder numa ilha.

Em “A Ilha de Bergman” (2004), ele fez uma lista com todos os demônios que tinha. Você tinha um que fosse o menos favorito? 

Na época em que estivemos juntos, ele ainda não tinha começado com isso, essa história dos demônios. Acho que isso virou um exagero, tanto por Ingmar quanto pelas outras pessoas. Agora com o centenário, colocaram aquele diabinho em capas de livros e sacolas de festival, as pessoas pensam que você é um adorador do demônio.

Havia aquela violência interna, ele tinha uns ataques, que chegavam e sumiam com a mesma velocidade. Era algo que ele simplesmente não conseguia controlar, mas significava apenas que ele estava muito envolvido com alguma coisa.

O que falávamos de “demônios” era essa coisa do medo, tudo que vem pela manhã, às 3h ou 4h, o que você sente, pensamentos horríveis quando se está sozinho na cama e no mundo. Mas foi por isso que ele fez seus filmes, ele pôs tudo nos filmes. 

Muita gente diz que não se pode confiar no que Ingmar dizia, que suas histórias mudavam com o tempo. Você concorda?

Não, mas às vezes ele exagerava. Tínhamos uma coisa entre nós que era assim: ele contava algo e eu perguntava “isso é uma pantera negra?”. Se fosse o caso, ele respondia imediatamente que sim, o que significava que estava aumentando a história. Mas mentir, nunca. Como ele poderia mentir, se colocava tudo em sua obra?

Mas a violência que existe em seus filmes é uma coisa que me inquieta. Porque eu nunca o vi ser violento. O máximo que vivi com ele foi a história que conto em “Mutações”, de ele me perseguir pela casa e escorregar no tapete e nós acabarmos numa gargalhada. Aliás, isso entrou no livro por sugestão dele, que leu o manuscrito e falou que eu tinha que contar essa história, que era ótima.

Recentemente tivemos outro episódio, em “Saraband”, quando ele disse que eu tinha prometido ficar nua na cena em que deito na cama com Erland. Eu disse que não, aí ele puxou a toalha da mesa e umas coisas caíram. Fiquei assustada e saí correndo. Ele veio atrás de mim e entramos na sala da maquiadora. “Fora, fora, fora!”, ele disse para as pessoas. Aí trancou a porta e nós começamos a dar risada. Mas isso não era violência, era como um elefante correndo atrás de uma girafa.

Ele já contou uma história sobre a cachorra de vocês, que ele levou para passear na neve e teve uma conversa muito séria, dizendo que, se ela não parasse de tentar mordê-lo, ele ia deixá-la amarrada numa árvore e fingir que ela tinha escapado. 

É verdade, ele disse que ia deixar a cachorra lá no frio. Mas vou te contar sobre essa minha cachorra, a Pet. Ela odiava Ingmar e sempre tentava morder o seu pé. Quando construímos a casa em Faro, ele disse que ela não podia ir e eu disse: “Sem ela eu não vou”. Aí ele aceitou, mas disse que ela só poderia ficar na entrada da cozinha. Com o tempo, ela foi conquistando a sala de estar e acabou até no escritório onde ele escrevia —onde nem eu era autorizada! 

Quando eu e Linn fomos embora da ilha, a gente não disse que estava se mudando, era uma viagem apenas. Estávamos na porta da frente, com um monte de malas, e a cachorra ficou do lado do Ingmar. Ela viu a gente entrando no carro e eu a chamei, “Pet, Pet”, mas ela me ignorou. Fingiu que estava olhando para uns pássaros no céu. Não arredou o pé do lado de Ingmar, então fomos embora sem ela. Ela ficou com ele. Era uma cachorrinha muito infiel.

No documentário “Liv e Ingmar” (2012), feito depois da morte dele, há muito sobre a relação de vocês. Você acha que ele teria aprovado ou ficado incomodado em ver a sua versão do relacionamento num filme? 

Quando o diretor me propôs esse projeto, eu disse que era importante que não fosse um filme sobre a minha relação com Ingmar e ele me disse que o próprio Ingmar escrevia sobre todo tipo de relacionamento. Assim me convenceu. 

Eu acredito que o filme é sobre o relacionamento de qualquer pessoa, não acho que ilustre a nossa relação. Sempre que apresento filmes em festivais, as pessoas me fazem perguntas sobre Ingmar ou então sobre mim. Mas nesse filme, depois das sessões —e isso nunca tinha acontecido comigo antes—, as pessoas começavam a falar de si mesmas e de seus relacionamentos. Acho que isso prova que eles não viram o filme como Liv e Ingmar. 

Houve quem dissesse que o filme ilustrava um relacionamento turbulento, mas eu acho que ele mostra simplesmente um relacionamento intenso. Fizemos três filmes enquanto vivemos juntos, outros tantos depois, tivemos uma filha e uma profunda amizade até sua morte. 


Helen Beltrame-Linné, graduada em direito pela USP e cinema pela Sorbonne Nouvelle (Paris), foi diretora da Fundação Bergmancenter (Suécia) de 2014 a 2017. É editora-adjunta da Ilustríssima e tem uma filha chamada Liv.

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