Descrição de chapéu Memorabilia

Filme de lobisomem feito por cantor brega me marcou, diz Selva Almada

Em artigo exclusivo, escritora argentina que vem à Flip fala sobre músico e cineasta que admira

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Selva Almada

A primeira vez que assisti a “Nazareno Cruz e o Lobo”, filme de Leonardo Favio (1938-2012), eu tinha uns 12 anos. A Argentina reconquistara a democracia havia pouco tempo, depois de sete anos de ditadura, e muitos filmes proibidos naquela época começavam a aparecer na televisão.

O filme começava com uma garotinha maltrapilha e de cabelos curtos murmurando uma cantiga macabra: “Bichito Colorado matou sua mulher/ com uma faquinha de ponta fina/ arrancou suas tripas e as pôs para vender/ por 20, por 20, as tripas quentes de minha mulher...”. Era uma canção que, quando meninas, cantávamos sempre em dupla, batendo palmas de uma contra outra.

O filme se passa na zona rural. Há montanhas, ovelhas, riachos cristalinos que correm entre as pedras; há peões e fazendeiros, pobres e ricos; há uma festa popular —a Noite de São João, em que o povoado inteiro se reúne para pular sobre fogueiras enormes.

Nazareno e Griselda se conhecem nessa noite, entre as chamas de São João que acenderão o amor entre eles: seu destino, sua maldição. Porque sobre Nazareno pesa uma sentença: ele é o sétimo filho homem, e, no dia em que despertar para o sexo e o amor, também despertará o selvagem que vive dentro dele. Ele será lobisomem, lobo solto nas noites de lua cheia.

Cheguei ao cinema de Favio aos 12 anos, mas ele estava em mim desde pequena em suas canções: as que tocavam na rádio e nos bailes da minha cidade, as que cantavam as filhas adolescentes de minhas vizinhas enquanto depilavam as pernas no pátio, debaixo de uma árvore, dentro de uma bacia. Enquanto fumavam escondidas de suas mães e eu preparava mate com limão para elas e as ouvia falando baixinho sobre namorados e amantes. 

Favio era a trilha sonora dessas tardes de sábado, a companhia dessas garotas como as que eu queria ser quando fosse grande.

Com Yani e Seba, dois amigos com quem compartilho o amor por Favio, criei coragem para ir conhecê-lo, com a desculpa de entrevistá-lo para uma revista. 

Planejamos tudo durante uma noite, tomando umas e outras. No dia seguinte começaríamos a ativar nossos contatos. Nesse dia recebemos a notícia de sua morte.


Selva Almada, escritora argentina convidada da Flip, é autora de “Garotas Mortas” (Todavia).

Tradução de Clara Allain

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