Flerte com outras artes é bom para dar fôlego ao cinema, dizem autoras

Em tempos de saturação de imagens, audiovisual pode garantir relevância ao se imbricar com teatro e literatura

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Fabiane Secches Juliana Cunha

[RESUMO] Autoras afirmam que, em tempos de saturação de imagens, com exposição permanente a fotos e vídeos, o cinema pode garantir relevância como expressão artística pelo flerte com linguagens teatrais e literárias.

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Cena do filme “Severina” (2017), de Felipe Hirsch, uma adaptação do romance homônimo do guatemalteco Rodrigo Rey Rosas - Divulgação

"NÓS declaramos que os velhos filmes romanceados e teatrais têm lepra. (...) NÓS afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação de seu presente. (...) NÓS protestamos contra a miscigenação das artes (...) NÓS depuramos o cinema (...) dos intrusos: música, literatura e teatro."

Em 1922, o cinema tinha pouco mais de 20 anos e os cineastas russos Dziga Vertov e Elizaveta Svilova, ao lado do diretor de fotografia Mikhail Kaufman, publicaram um manifesto que reivindicava a sua autonomia em relação às outras artes.

Como expressão desse projeto estético e político, Vertov filmou "Um Homem com uma Câmera" (1929), um longa sem atores, sem diálogos e basicamente sem personagens, completamente centrado em recursos de imagem próprios do cinema, como a câmera lenta, os cortes e os close-ups extremos.

A obra de Vertov é frequentemente listada como um dos melhores filmes da história e, quase cem anos depois do manifesto, o cinema certamente conseguiu firmar seu valor como expressão autônoma.

Durante esse período, a alternância entre refutar e abraçar as influências externas foi tensionada por movimentos tão distintos quanto cinema direto, cinéma pur e montagem soviética (defensores do purismo), de um lado, e cinema novo, cinéma du look e expressionismo alemão (partidários da permeabilidade), de outro.

"Essa forte tendência do cinema contemporâneo de se entrelaçar com o teatro e com a literatura evidencia uma hibridização que —conduzida de forma consciente ou não— acompanha o cinema narrativo-dramático em toda a sua história, sendo uma questão sempre presente no debate", observa o crítico Ismail Xavier, professor emérito de cinema da ECA-USP.

Em tempos de saturação de imagens, em que há uma exposição permanente a fotos e vídeos, o flerte com linguagens teatrais e literárias tem garantido fôlego e originalidade a algumas das melhores produções do cinema nacional —uma onda que talvez tenha sido impulsionada por Luiz Fernando Carvalho com "Lavoura Arcaica" (2001).

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Cena de "Lavoura Arcaica" (2001), de Luiz Fernando Carvalho - Divulgação

O longa é ainda hoje considerado um corpo estranho no cinema brasileiro do início do século. Isso em parte se dá por causa da estreita relação com a literatura e com o teatro em uma época em que o cinema brasileiro estava indo para outra direção: a do realismo social, com filmes como "Central do Brasil" (1998) e "Cidade de Deus" (2002).

A pesquisadora Ilana Feldman descreve o longa como sendo uma ópera barroca. "Do popular ao erudito, da artesania à tecnologia, Luiz Fernando Carvalho tem transitado entre gêneros e tempos, misturando cinema, literatura, televisão, fábulas populares, poesia, circo, teatro, ópera e novelas de cavalaria", escreveu em artigo conjunto com Xavier na Ilustríssima em 2016.

O diretor trabalha atualmente em uma releitura de "A Paixão Segundo G.H." (1964), de Clarice Lispector, para o cinema.

Hoje, esse movimento rumo ao hibridismo talvez tenha chegado ao ápice, abarcando algumas das melhores produções dos últimos cinco anos. É o caso de "Arábia" (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans, no qual o teatro é referência tanto para o enredo quanto para a estrutura formal do longa.

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Cena de 'Arábia' (2017), filme dos diretores Affonso Uchôa e João Dumans - Divulgação

No filme, o relato literário de um trabalhador braçal em seu diário serve como fio condutor da narrativa que, além do mais, é filmada em planos abertos e frontais que dão uma dimensão teatral às imagens.

"A gente procurou fazer com que a configuração dos corpos dos atores na cena lembrasse um palco. O gestual e a própria narrativa em off também buscam um afastamento da representação naturalista e uma aproximação com o teatro", conta Uchôa.

A cineasta Vera Egito, que acaba de estrear no teatro com a peça "Eu Sou Essa Outra", defende que "o que tem aparecido de mais interessante no cinema nacional ressoa o que tem acontecido no teatro contemporâneo: uma ênfase no personagem. Felipe Hirsch tem feito isso. Karim Aïnouz também".

O mesmo ocorre em "Deserto" (2016), primeiro longa-metragem de Guilherme Weber. Embora bastante imagética —a fotografia parte de pinturas de Velázquez e Rembrandt, além de gravuras de livros de fábulas—, a obra é sobretudo um filme de personagens, nascidos do romance mexicano "Santa Maria do Circo" (1998), de David Toscana.

Weber, que vem de uma longa experiência no teatro, enxerga o livro como ponto de partida ou "febre primeira", por ter lhe trazido as temáticas com que gostaria de trabalhar, como a questão da performatividade da identidade social.

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Cena de "Deserto" (2016), de Guilherme Weber - Divulgação

A cineasta Lúcia Murat também mergulhou na questão identitária em "Praça Paris" (2017), mais especificamente nas tensões políticas e sociais vividas por uma mulher negra e marginalizada. Ela se valeu da colaboração com a dramaturga e diretora de teatro Grace Passô, que participou da composição dos diálogos em geral e da protagonista, interpretada por ela.

Murat prepara agora uma releitura cinematográfica da peça "Há Mais Futuro que Passado" (2017), da companhia carioca Complexo Duplo, misturando road movie com documentário de ficção.

A mistura de linguagens também é o centro de "Pendular" (2017), dirigido por sua filha, Júlia Murat. O filme traz como protagonistas um casal de artistas: ela é bailarina, e ele, escultor. O longa flerta com elementos de dança e de artes plásticas, assimilados no fluxo da obra que, por vezes, assume ar de performance.

Para a dramaturga Carla Kinzo, a hibridização, que atinge em cheio as fronteiras entre artes e, de viés, cada uma delas, tem natureza de "exercício ensaístico": "Pondo-as em contato, esse exercício cria um espaço de ambivalência em que a criação pode ser muito potente. Tenho me interessado cada vez mais por essas contaminações", diz Kinzo, cuja formação em cinema, letras e teatro reflete o interesse pela mistura.

Em "Vermelho Russo" (2016), longa-metragem dirigido por Charly Braun e escrito em parceria com Martha Nowill, o teatro também é tematizado: duas atrizes viajam a Moscou para estudar o método de atuação de Stanislávski e ensaiam a peça "Tio Vânia" (1898), de Tchekhov.

"Nada mais desagradável do que assistir a um teatro filmado. Foi uma das primeiras coisas em que pensei quando decidimos fazer um filme no qual um dos personagens principais é o teatro", comenta Nowill, que também atua no filme.

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Cena do filme "Vermelho Russo" (2016), de Charly Braun - Divulgação

Para estabelecer esse diálogo, um dos caminhos encontrados pelos roteiristas foi fazer com que a trama das personagens da peça fosse essencial para a trama das personagens do filme. Assim, o cinema incorporou o teatro, e a ficção foi capaz de acolher a linguagem documental.

O mesmo caminho é observado em "Olmo e a Gaivota" (2015), de Petra Costa, que tem no centro outra peça de Tchekhov, "A Gaivota" (1896). Como no longa de Braun, os protagonistas interpretam personagens que têm os nomes dos atores, embaralhando o esquema representativo.

Em "Era o Hotel Cambridge" (2016), espécie de docudrama de Eliane Caffé sobre um antigo hotel ocupado por sem-teto em São Paulo, há uma sequência em que a diretora encena uma peça com atores profissionais e não profissionais.

"Foi um recurso importante porque explicita algo que permeia o filme inteiro: esse ficcionalizar para chegar mais perto de um entendimento do real do que eu talvez conseguisse fazendo um documentário clássico", afirma Caffé.

Do outro lado de uma ponte que nunca esteve tão bamba, "Jogo de Cena" (2007), de Eduardo Coutinho, se passa integralmente sobre um palco, com participação de atores e não atores, para tratar da encenação e da teatralidade da vida cotidiana.

marília pera em teatro
Marília Pêra em "Jogo de Cena" (2007), de Eduardo Coutinho - Divulgação

A obra tem diversas instâncias representativas, já que as entrevistadas narram suas histórias pessoais, de certa forma recriando suas próprias jornadas e, depois, esses relatos são interpretados pelas atrizes.

Para Feldman, "Jogo de Cena" se insere num contexto social e cultural em que o espetáculo é generalizado e no qual há uma disputa pela performance mais convincente. A linguagem é examinada em seu caráter performativo, e não como mero acesso transparente a uma realidade passível de representação objetiva. Coutinho mostra que a confusão de linguagens não cumpre apenas uma função estética.

Na contramão da radicalidade proposta por Vertov nos anos 1920, fica claro que essa junção de esforços em obras interdisciplinares, que tensionam os limites entre diferentes disciplinas e expressões artísticas, pode viabilizar uma representação mais apurada da complexidade do nosso tempo. 


Fabiane Secches, psicanalista, é mestranda do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

Juliana Cunha, jornalista, é mestranda do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

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