Folha publica em 1ª mão cena de roteiro inédito de Bergman; leia

Peça "Sessenta e Quatro Minutos com Rebecka" fala de amor homossexual adolescente

Ingmar Bergman tradução Helen Beltrame-Linné

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página é uma das 14 cenas de “Sextiofyra Minuter med Rebecka” (sessenta e quatro minutos com Rebecka), roteiro inédito nunca filmado nem publicado pelo diretor. 

pintura em preto e branco
Ilustração para roteiro de Bergman - Eduardo Berliner

9. Sobre amor

Uma sala branca impessoal, entulhada com objetos heterogêneos. Bettina Lualdi é uma mulher de quarenta anos com um rosto sofrido (um pouco perturbado), mas ainda assim muito bonito. A professora Gerda Schaub, uma assistente feminina e Rebecka estão sentadas na sala. É uma tarde de inverno cinza escura.

Professora: (muito vermelha) Essa é a terceira vez que a Anna foge do Instituto. Nas duas vezes anteriores nós a encontramos aqui na sua casa. Seja razoável, senhora Lualdi. Do contrário, seremos obrigadas a vir buscar a menina com ajuda da polícia.
Bettina: Eu juro que ela não está aqui.
Professora: Você não entende que está deixando tudo mais difícil para a menina? Aliás, você corre o risco de ser processada.
Bettina: Isso não é verdade.
Professora: Você dirige um clube para mulheres homossexuais e vocês ficam lá naquele lugar noites inteiras.
Bettina: É totalmente dentro da lei.
Professora: Mas não é um ambiente para uma menina de quatorze anos.
Bettina: E o que você sabe sobre isso?

Silêncio. A professora acende um cigarro. Rebecka observa fixamente aquela mulher humilhada e miserável. Ela se sentou em uma cadeira alta, perto da parede, e aperta as mãos, olhando para uma e para a outra. Os óculos grossos de armação preta escondem seu olhar, mas sua boca treme.

Bettina: Ela está lá dentro. Está dormindo. Eu a observei a noite toda. Ela não quer voltar ao instituto. Ela quer ficar aqui comigo. Eu a amo. É muito humilhante ter que dizer isso, mas eu não tenho outra saída. Eu a amo e ela me ama. Nós vivemos juntas. Ela mesma quer isso. E ela é feliz comigo. É humilhante ter que explicar tudo isso. Vocês sentam aí como juízas. Mas eu não tenho consciência pesada. Eu não posso ter consciência pesada. Comigo ela sempre esteve calma e feliz. Vai fazer quatro anos que eu cuido dela. Nós crescemos juntas. (para Rebecka:) Você é a sua professora. Ela diz que você é tão gentil com ela. E ela quer continuar aprendendo a falar, mas ela quer morar aqui comigo. Esta é a casa dela. Diga que você entende.

Ela se vira para Rebecka, que se vê surpresa e sem reação diante do tormento e da vergonha da mulher.

Rebecka: Eu não tenho nada a dizer.
Bettina: Você não tem nada a dizer. Mas você também é mulher. Você deve saber como é gostar muito de alguém que se agarrou ao seu corpo. A gente quer proteger, dar carinho. E recebe carinho de volta. É como uma corrente sanguínea. Eu não consigo explicar de outra forma. O que a polícia tem a ver com isso? Eu não entendo. Comigo a Anna tem tudo que ela precisa. Eu posso sustentá-la. Eu poderia adotá-la.

Professora: Você fala contra seu melhor juízo.
Bettina: Ah, é tão humilhante! Eu sei que você entende. Eu sei que você está do meu lado.
Professora: (calma) Eu não estou do seu lado. Eu acho que você e a garota estão vivendo um superaquecimento emocional que deve ser danoso para uma criança da idade dela.
Bettina: O amor não pode ser danoso.
Professora: Muita coisa acontece em nome do que se chama de amor, Signora. Muito que... (ela se acalma) se torna assustador, bruto, feroz. (Ela morde os lábios para não dizer nada.)
Bettina: Você está tirando de mim tudo o que eu tenho.
Professora: Eu acho que você está sendo dramática. Se o amor de vocês é tão forte quanto você diz, basta que espere alguns anos. Aí você pode fazer o que quiser com a garota.
Bettina: (para Rebecka) Tente entender. Você não pode tentar entender?
Rebecka: (balançando a cabeça) Não.
Bettina: (depois de uma pausa) Eu mesma vou falar com a Anna. (calma) Vocês esperam aqui fora? Se vierem comigo vão assustá-la. Vou acordá-la com cuidado e falar com ela.

Bettina entra no cômodo ao lado. A professora levanta e dá alguns passos, apaga seu cigarro no cinzeiro. A assistente olha para suas unhas.

Rebecka: Talvez estejamos agindo errado.
Professora: É muito possível, até mesmo provável.
Rebecka: Por que estamos fazendo isso, então?
Professora: Imagine um escândalo público, com envolvimento do instituto? O que diremos em nossa defesa? Vou dizer que acredito no amor? Explicar que o amor da signora Lualdis protege a criança de todo mal? Serei considerada uma idiota.
Rebecka: (com excitação) Então você acha que é—
Professora: (calmamente) que é amor. Eu acho que o amor se parece um pouco com isso aqui. Mas a gente nunca tem certeza, não é mesmo?
Rebecka: (inquieta) É irremediável.

Ouve-se Bettina conversar com a garota por trás da porta. Então elas saem do quarto juntas. Anna está usando uma saia vermelha. Está pálida e trêmula, mas contida. Bettina penteia o seu cabelo e fala baixinho com ela. Está muito diferente agora: controlada, suave e bondosa. A garota olha para ela o tempo todo. Bettina a entrega para Rebecka.

Bettina: Posso ligar hoje à noite para saber se tudo correu bem? (para Rebecka:) Qual o seu nome?
Rebecka: Rebecka Lawrence. Você pode ligar quando quiser. 

Faro, 7 de agosto de 1969. 


Ingmar Bergman (1918-2007) foi um cineasta sueco.

Helen Beltrame-Linné, graduada em direito pela USP e cinema pela Sorbonne Nouvelle (Paris), foi diretora da Fundação Bergmancenter (Suécia) de 2014 a 2017. É editora-adjunta da Ilustríssima.

Eduardo Berliner é artista plástico.
 

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