Jeito de jogar futebol diz algo sobre cada país, afirma jornalista inglês

Jonathan Wilson, que escreveu livro sobre a história da tática, analisa estilo de jogo para além de estereótipos

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Jonathan Wilson

[RESUMO] Para jornalista que escreveu livro sobre história da tática no futebol, a maneira pela qual cada país aborda o esporte diz algo sobre como a nação se vê. Ele afirma, porém, que a conexão entre caráter nacional e estilo de jogo não é direta nem imutável.

 

Escritores como Eduardo Galeano e Albert Camus observaram que o esporte tem a capacidade de revelar a verdade do indivíduo. Podemos conversar e desenvolver hipóteses sobre certo e errado, sobre os limites da moralidade, mas é em campo, onde não há tempo para pensar, onde as ações são instintivas, que a realidade de nossas teorias é testada. 

Sob pressão, com o defensor se aproximando, nós nos jogamos ao chão? Pedimos escanteio mesmo que tenhamos sido os últimos a tocar na bola? Agarramos a camisa do atacante, pelas costas do juiz, quando ele está escapando da marcação? 

O exame que o futebol oferece, porém, não é apenas de moralidade; é sobre quem somos. Quando precisamos de um gol desesperadamente, continuamos trocando passes ou lançamos a bola na área e contamos com a sorte de um rebote? Temos fé em nossa habilidade ou nos deixamos atrair por algo mais primitivo? Confiamos em nossos colegas de time ou tentamos resolver o problema sozinhos? Aceitamos a responsabilidade ou nos escondemos?

O futebol talvez seja a única empreitada cultural universal, a única atividade pela qual o mundo todo se interessa e em que todos jogam pelas mesmas regras. A maneira pela qual cada país aborda o esporte, portanto, diz algo sobre a nação, sobre como ela se vê e sobre os valores aos quais confere importância. 

A questão do estilo nacional fascina o futebol desde que a primeira partida internacional foi disputada, entre Inglaterra e Escócia em 1872. O esporte era basicamente uma correria, combinando trombadas e dribles, mas os escoceses, percebendo que os ingleses eram muito maiores e os sobrepujariam no físico, começaram a trocar passes para manter a bola longe dos adversários. 

O resultado foi o desenvolvimento do estilo escocês do futebol de passes, tão distinto e efetivo que os primeiros clubes de futebol profissionais da Inglaterra (Preston North End, Sunderland e Aston Villa) conquistaram seu sucesso nas décadas de 1880 e 1890 em larga medida pela importação de jogadores da Escócia.

A Escócia continua a ser reverenciada pelo seu jogo de passes? Não, mas é revelador que, quando o país fracassou na busca de uma vaga para a Copa da Rússia, seu treinador, Gordon Strachan, tenha atribuído a culpa a fatores genéticos —exatamente a mesma falta de estatura que levou os escoceses a desenvolver o passe 150 anos atrás.

O aspecto físico, porém, é apenas uma das muitas maneiras pelas quais os estilos nacionais se desenvolvem —e, com a imigração crescente e a melhora na nutrição mundial, é razoável presumir que essas diferenças diminuirão com o tempo. Muita coisa no estilo nacional de futebol de cada país é mais sutil e tem a ver com filosofias e personalidades.

Diversos países são obcecados por jogar de uma determinada maneira. 

A Holanda, por exemplo, recua sempre aos times do Ajax do começo da década de 1970 e à sua grande seleção de 1974.

Se o time não jogar no 4-3-3 e se não privilegiar a posse de bola e a pressão sobre a saída de bola adversária, com alas genuínos jogando bem abertos, pelo menos metade do país protesta contra essa traição (segundo o escritor e jornalista David Winner, o estilo deriva da obsessão por espaço que caracteriza a sociedade holandesa desde que o país começou a recuperar terras do mar a fim de acomodar a expansão de sua população). 

A Espanha, graças à influência de Rinus Michels e Johan Cruyff no Barcelona, hoje talvez jogue um futebol mais holandês que o da Holanda. Todo o sucesso dos espanhóis nos últimos dez anos —duas Eurocopas e uma Copa do Mundo— surgiu depois que o país abandonou seu estilo nacional, “la furia roja” —a fúria vermelha, uma abordagem baseada em energia e agressividade—, e adotou o modelo holandês.

E isso talvez seja um indicador de que discussões sobre estilo nacional devem ser tratadas sempre com cautela. É fácil recair em estereótipos ou presumir que um estilo nacional de jogo e um “caráter” nacional, se é que isso pode existir, são imutáveis: que os italianos sempre jogarão na defesa, que os alemães sempre serão eficientes, que os uruguaios sempre serão raçudos...

A relação da Inglaterra com sua história parece particularmente complexa. Quando o futebol é aprendido na lama e na chuva, talvez seja natural que ele priorize a força física e a resistência, que tenha pouco espaço para a sutileza, especialmente se o embate corpo a corpo serve tão bem à percepção do caráter nacional como avesso a qualquer coisa astuta ou intelectual demais.

É o futebol das fábricas, dos estaleiros e das minas, os lugares onde o esporte primeiro se desenvolveu e nos quais solidez, confiabilidade e perseverança são as virtudes mais apreciadas. 

Mas também é fato que, quando a porção central do gramado vira um lodaçal —como era o caso na Inglaterra, em outubro—, os jogadores mais habilidosos precisam jogar pelas pontas. É por isso que, até mesmo nos anos 50, o ponta tendia a ser o jogador mais talentoso em campo, e é por isso que o jogo se baseava em ataques pelas laterais e cruzamentos para um centroavante grandalhão. 

Desde a chocante derrota para a Hungria por 6 a 3 em 1953, a primeira sofrida em Wembley diante de um adversário estrangeiro, há a sensação de que a Inglaterra necessita abrir mão de suas tradições e desenvolver um jogo que envolva mais posse de bola, mais habilidade, um estilo menos direto.

O relacionamento entre a seleção de um país e o “caráter nacional” raramente é simples e direto. Há momentos em que é possível ver conexões entre o ambiente político prevalecente e a abordagem tática de uma equipe nacional, mas a relação muitas vezes é complexa.

 

A Itália de Vittorio Pozzo, que ganhou duas Copas na década de 1930, por exemplo, claramente exibia uma musculatura que refletia a celebração das virtudes militares pelo regime fascista. Mas nem todas as seleções que representam países com governos de extrema direita jogam assim, como é evidente para qualquer um com o mínimo de conhecimento sobre o futebol brasileiro. 

A Argentina oferece um raro exemplo de estilo nacional que exprime de maneira muito autoconsciente o caráter nacional.

Quando os britânicos se retiraram da Argentina nos anos imediatamente anteriores à Primeira Guerra Mundial, deixaram para trás um país jovem e imigrante, com cerca de 1 milhão de espanhóis, 800 mil italianos, 400 mil europeus do norte da Europa, 400 mil árabes e cerca de 100 mil britânicos, irlandeses, franceses e alemães. Essas pessoas pouco tinham em comum, e por isso surgiu um processo consciente para definir o que significava ser argentino.

Em 1912, o poeta Leopoldo Lugones definiu o argentino em contraposição ao britânico. À época, o Reino Unido controlava o país na prática. Os britânicos introduziram as cercas de arame, que tornaram a pecuária muito mais eficiente e solaparam o poder dos gaúchos, os heróis dos pampas, romantizados na primeira grande obra da literatura argentina, “Martín Fierro”. O gaúcho, disse Lugones, é o verdadeiro argentino: prático, astucioso, durão. 

O futebol argentino também podia ser apresentado em oposição ao inglês. Os britânicos aprenderam o jogo nos vastos gramados de suas escolas, onde resistência e força física eram vitais. Os argentinos aprenderam em terrenos baldios de suas favelas, espaços apertados, superlotados, com superfícies irregulares e nos quais não havia professores para interferir se as coisas ficassem feias.

O que importava ali era habilidade técnica, mas também a capacidade de cuidar de si mesmo. Assim, o elemento mais procurado era o “pibe”, o moleque dos cortiços —e o que era ele senão uma representação urbana do espírito gaúcho?

Mas, no geral, o relacionamento entre estilo e caráter nacional é indireto, plástico, vislumbrado em relances e ecos, em parte porque estilo de jogo e caráter nacional são em si tão nebulosos. A recente Copa do Mundo serve como exemplo. A notícia tática importante, para muitos, foi a eliminação prematura dos dois últimos campeões, Espanha e Alemanha, que praticam um jogo baseado em posse de bola.

Havia diferenças significativas entre a seleção de Vicente del Bosque em 2010 e a de Jogi Löw em 2014, mas ambas basearam seu sucesso na industrialização da produção de talentos jovens (como fez a França) e em garantir que os atletas saídos de suas academias tivessem boa formação técnica e fossem capazes de reter a posse de bola. Para os dois países, isso representou uma grande mudança em relação à maneira de jogar que adotavam na década de 1940.

Também é fato que Espanha e Alemanha fracassaram agora em larga medida porque não conseguiram converter posse de bola em boas oportunidades de gol. Talvez isso signifique que os oponentes aprenderam a combater quem busca dominar a bola, mas não que o futebol de posse de bola tenha se tornado obsoleto.

Para começar, Manchester City, Barcelona e Bayern de Munique —os três clubes mais apegados ao estilo de Pep Guardiola, que serviu de base ao sucesso espanhol— venceram os campeonatos de seus países na temporada mais recente. 

O que essas eliminações significam é que Espanha e Alemanha tiveram uma Copa ruim —a primeira prejudicada pela demissão do treinador Julen Lopetegui na véspera do torneio, a segunda solapada por panelinhas e pela complacência do time.

A campeã França jogou uma forma antiquada de futebol, baseada em manter estruturas defensivas, que lembra a maneira pela qual o time venceu a Copa do Mundo de 1998, com Didier Deschamps, atual treinador da equipe, como capitão. É um estilo distintamente francês? Talvez, mas certamente não o estilo praticado pela mais amada das seleções do país, aquela que Michel Platini capitaneava nos anos 80.

O que é um lembrete útil de que os estilos nacionais são escorregadios e de que a conexão entre o caráter nacional e a tática em campo é oblíqua e raramente tão simples quanto os estereótipos podem nos levar a crer. 


Jonathan Wilson, jornalista inglês, é autor de “A Pirâmide Invertida - A História da Tática no Futebol” (ed. Grande Área) e editor da revista trimestral The Blizzard.

Tradução de Paulo Migliacci.

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