'Teatro era a tessitura dos dias de Bergman; cinema, um evento sísmico'

Jean-Michel Frodon, ex-editor da Cahiers du Cinéma, escreve artigo exclusivo para a Folha

Jean-Michel Frodon

[RESUMO] Ex-editor-chefe da revista Cahiers du Cinéma argumenta que cinema e teatro sempre caminharam juntos na vida de Bergman.

 

É legítimo que Ingmar Bergman seja célebre no mundo como diretor de cinema, considerando que sua obra cinematográfica tem uma riqueza extraordinária e se estende por várias décadas, desde “Crise” (1946) até “Saraband” (2003).

No entanto, a obra de Bergman e, mais ainda, sua vida como artista estão longe de se resumirem ao cinema. Dois outros meios de expressão, o teatro e a televisão, ocupam lugares muito importantes —embora nada simétricos— na sua trajetória.

Bergman, que é também escritor, fez um livro de memórias sobre seu trabalho de cineasta, “Imagens” (1990). Mas em “Lanterna Mágica” (1987), sua primeira autobiografia, ele tratou da própria história e de sua personalidade —e revelou acima de qualquer dúvida o lugar central que o teatro ocupou em sua vida.

 

Não faz sentido opor cinema e teatro em Bergman. O cinema é para ele uma espécie de acontecimento profundo, um choque emocional que o remete de volta à infância e ao inconsciente —um tipo de sismo que retorna ao longo de sua vida. Mas o teatro é a própria tessitura dos dias, dos anos; foi a matéria de sua vida no presente. 

Bergman não foi só um grande encenador, dirigindo nos locais mais importantes da Suécia e montando os maiores textos. Foi a alma de um grupo de teatro, o espírito —inteligente, complexo, paradoxal— de um projeto coletivo ligado ao palco e à presença de um espaço de encenação na cidade, no sentido que Aristóteles conferiu à tragédia em Atenas.

Sem tornar o teatro um desafio explicitamente político, vacinado por suas errâncias na época nazista, Bergman fez dele sobretudo uma ideia da existência, um plano de vida. Essa relação alimenta muitos de seus filmes, mas não o transforma num cineasta teatral.

A maneira livre e sensual pela qual o jovem casal de “Monika e o Desejo” (1953) ocupa a natureza, assim como o longo olhar silencioso de Harriet Andersson à câmera (e aos espectadores) —que tanto marcaria os críticos da Cahiers du Cinéma e seria um ponto decisivo na história da linguagem cinematográfica—, não têm equivalentes em outra arte.

O mesmo se aplica à montagem alucinante no início de “Persona” (1966), a composição de imagens em um mesmo plano (o rosto duplo), a crise de histeria visual dos planos ultracurtos, alucinatórios e hipnóticos, chegando à ruptura da própria matéria da película, que arde em chamas.

Há que falar também dos poderes múltiplos do plano sequência, convocados em “O Silêncio” (1963) ou “Vergonha” (1968), e dos closes em “Gritos e Sussurros” (1972) ou, de modo tão diferente, em “Cenas de um Casamento” (1973) —sortilégios que devem tudo à arte do cinema.

Bergman foi indiscutivelmente um inventor de meios de expressão próprios do cinema, alguns deles espetaculares, outros muito mais discretos —ah, o terror e o desespero na escada de “Sonata de Outono” (1978)!

Seus filmes foram também enriquecidos por suas experiências teatrais, ou, mais amplamente, de palco —ópera, circo, musical, marionetes e, com menos frequência, dança—, que neles exercem múltiplas funções. São muitos os seus personagens que fazem apresentações no palco ou têm nele sua profissão.

Para Bergman, o mundo do espetáculo não é apenas um espaço que atrai e fascina, mas também um recurso valioso para explorar os labirintos das aparências, das incompreensões sobre a distância entre a ideia que fazemos de nós mesmos e a imagem que os outros têm a nosso respeito; as mil e uma formas de disfarce social, de maquiagem sentimental, de subterfúgio psicológico, da tragicomédia da vida real —em especial no casal e na família, mas também na relação com o sagrado.

Se “Depois do Ensaio” (1984) encena aquilo que Bergman definiu como “minha relação com o palco, esse ofício sujo, escuso e cruel”, sabemos que essa relação é também o eco do mais feliz e elevado universo da infância, como ele mostra em “Fanny e Alexander” (1982).

Graças a essa relação apaixonada, vital e obsessiva, aos 20 anos Bergman já havia escrito 12 peças, sob a influência —reivindicada e declarada por toda sua vida— do dramaturgo sueco August Strindberg. E foi em referência ao “teatro de câmara” de Strindberg que Bergman iniciou o que chamaria de “cinema de câmera” em “Luz de Inverno” (1963).

Mas o maior efeito —essencial, porém invisível— da prática teatral sobre o cinema de Bergman é certamente seu trabalho com os atores, e, mais ainda, com as atrizes. Muito do que permite a riqueza do jogo e a delicadeza de “Sorrisos de uma Noite de Amor” (1955), assim como a violência e a profundidade abismal de “Face a Face” (1976), se deve ao que aconteceu no trabalho teatral que precedeu os filmes.

Não temos e nunca mais teremos acesso ao trabalho de Bergman como diretor de teatro, o seu trabalho do instante presente. 

Existem algumas gravações de encenações feitas para a TV: obras menores do final dos anos 1950, como “Herr Sleeman Kommer” (1957), “Venetianskan” (1958) e “Rabies” (1958), que demonstram as limitações do gênero, assim como o fará anos mais tarde “De Tva Saliga” (1986). 

Exemplo bem-sucedido é “A Flauta Mágica” (1975), em que Bergman dirigiu uma encenação da ópera de Mozart, mas empregou e evidenciou os recursos singulares do cinema.

No que diz respeito à TV, como linguagem específica, ela ocupou um lugar mínimo ou quase inexistente em seu trabalho —longe do espaço de exploração que Renoir, Rossellini, Hitchcock, Godard e outros diretores reservaram a esse meio.

Quando, em 1982, Bergman proclamou em alto e bom som que havia terminado com o cinema e que, além de seu trabalho teatral, somente realizaria com uma câmera trabalhos para a televisão, ele estava sob o efeito do que ele próprio descreveu como “um sofrimento enorme”. E, também, de uma ira tremenda.

A indústria do cinema o obrigara a mutilar um filme que lhe era especialmente caro, “Fanny e Alexander”, enquanto a TV, ao preço de uma divisão em quatro partes, aceitou a única versão que Bergman considerou válida, com 5 horas e 12 minutos.

Num contexto em que um cineasta tão grande passa a ser tratado com mais consideração pelos responsáveis por televisões (públicas) do que por produtores privados, Bergman rodou grandes obras de cinema que se recusou a qualificar como tais, impedindo que fossem exibidas nas telonas, pelo menos em seu país.

Com que direito, então, declarar em alto e bom som que produções televisivas como “Depois do Ensaio” (1984), “Na Presença de um Palhaço” (1997) e “Saraband” (2003) são cinema e, mais que isso, obras de grande importância na história do cinema? 

Simplesmente porque Bergman construiu pacientemente para cada espectador a possibilidade de explorar livremente, às vezes perigosamente, a montagem de imagens e sons, de corpos e palavras, de fantasmas e angústias, de espaço e de tempo que só o cinema permite. 

Mesmo seu trabalho documental —nos dois filmes sobre a ilha de Faro e, sobretudo, em “Karins Ansikte” (1984), sobre imagens de sua mãe— deve mais ao cinema que à televisão, com o importante papel dado ao não dito, ao silêncio e ao que está fora do campo visual.

Estrategicamente, a televisão —ou, mais precisamente, as emissoras de TV— se declarou sua aliada no momento em que o cinema —ou, melhor dizendo, os produtores de cinema— se recusava a acompanhar um dos maiores artistas do século.

Bergman se vingou, anunciando ter abandonado o cinema, mas a sétima arte continuou a brilhar na beleza, violência e emoção de suas criações para TV, especialmente os derradeiros trabalhos “Na Presença de um Palhaço” e “Saraband”. São obras que se integram plenamente na sua abordagem artística única, em que dois grandes meios de expressão, o teatro e o cinema, dividiram inextricavelmente o seu talento. 

Eu sua última publicação em vida, a coletânea de roteiros “The Fifth Act” (o quinto ato), foi o próprio artista quem sintetizou essa trajetória: “Essa obra evoca meus companheiros incansáveis: o teatro, o palco, os atores e o cinema, os cinemas, a arte, a técnica do cinema. Eles me acompanham desde que construí meu primeiro teatro de bonecos, sob a mesa pintada de branco de nosso quarto quando éramos crianças, e desde que, alguns anos mais tarde, entrei no imenso guarda-roupa com minha pequena máquina de metal e sua manivela ligada a uma engrenagem dentada e uma cruz de Malta, sua lente, sua lâmpada de querosene e seu pedaço de filme sépia”.


Jean-Michel Frodon, jornalista, crítico de cinema e professor na Sciences Po, em Paris, foi editor-chefe da Cahiers du Cinéma (2003-2009).

Tradução de Clara Allain

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