Tiradentes espalhou fake news em Minas Gerais, mostra novo livro

Biografia que será lançada neste mês reconstitui a trajetória do alferes que se envolveu na Inconfidência Mineira

Lucas Figueiredo

[RESUMO] Livro ‘O Tiradentes’, a ser lançado neste mês, reconstitui a trajetória do alferes que se envolveu na Inconfidência Mineira. A Folha antecipa nesta página trechos nos quais o autor mostra como notícias falsas foram usadas para mobilizar a população.

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Ilustração de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792). - Reprodução

Joaquim José da Silva Xavier tinha consciência de qual era sua posição na escala social entre os conspiradores. Diferentemente da grande maioria de seus camaradas, ele não era rico, não vinha de um clã influente, nem ingressara numa família poderosa pela porta do matrimônio. Tampouco fazia parte da brilhante turma de poetas, escritores e doutores da conjuração. 

O alferes definia a si próprio como alguém que não tinha “figura, nem valimento, nem riqueza”. Mas Joaquim possuía algo que o colocava, se não em posição de comando, em um lugar de suma relevância no grupo. Entre todos os rebeldes, ele era de longe o “mais empenhado”.

Na conspiração, o alferes assumiu três missões delicadas: recrutar o maior número possível de apoiadores e simpatizantes; propagar os ideais da sedição; espalhar em Minas Gerais e no Rio de Janeiro a notícia de que a revolta era iminente, a fim de torná-la um fato consumado. 

Tendo escolhido as tarefas mais arriscadas da fase de preparação do motim, Joaquim traçou uma tática audaciosa para si. Ele sairia “alucinadamente” —palavras do próprio Tiradentes— convidando “a todos quanto podia” a ingressar nas fileiras da sublevação. [...] O alferes sabia que encontraria discórdia em sua jornada, mas havia decidido ignorar as consequências. Nas abordagens que faria, não escolheria local ou ocasião. E num misto de bravura e falta de juízo, tampouco pediria segredo a seus interlocutores.

Sem rota de fuga ou chance de recuo, Joaquim passou a difundir o movimento e a buscar adeptos em lugares de grande circulação de pessoas (tabernas, estalagens, repartições, residências, praças, pontes etc.). [...]

A fim de fazer reverberar a falsa informação de que o motim era iminente, o alferes propalou a notícia em locais tradicionalmente propensos à disseminação de boatos. Assim, a Conjuração Mineira foi parar nos prostíbulos de Vila Rica, dos quais Joaquim era frequentador assíduo.

Ao pregar nos bordéis, ele às vezes misturava o sonho republicano com seus mal atendidos anseios pessoais. Numa ocasião, estando em casa de certas michelas da capital mineira, uma delas, Caetana Francisca de Moura, pediu a Tiradentes que usasse de sua influência para facilitar o ingresso de seu filho no Regimento de Cavalaria. Sugerindo de forma misteriosa que em breve aconteceriam mudanças na capitania, Joaquim fanfarreou: “Deixe estar, minha camarada, que ninguém há de sentar praça a seu filho, senão eu”.

O alferes contou à meretriz que esperava boas-novas tanto para Minas quanto para si. Disse que ganharia muito dinheiro com os projetos hídricos no Rio (ele não havia desistido da ideia) e que faria a capitania “feliz”, tornando-a independente. Batata! A fala correu de boca em boca na capital mineira. E em pouco tempo muitos saberiam que Tiradentes andava em bordéis “a prometer prêmios para o futuro, quando se formasse nessa terra uma república”.

Joaquim não perdia uma oportunidade sequer para propagar a sedição. Pregava a rebelião até mesmo quando tinha diante de si um paciente com a boca aberta a receber uma prótese de osso no lugar do dente perdido.

Correndo de um lado para outro a conspirar, o alferes chamava atenção. Em Vila Rica, dizia-se que ele “andava feito corta-vento”. Era visível que Tiradentes se empolgara no papel de agitador, tornando-se “um homem animoso”. Segundo testemunhas, ele ficava tão “inflamado” ao discursar que às vezes “chegava a chorar”. Um homem que o viu defender a insurreição numa estalagem, em meio a estranhos, afirmou que Joaquim parecia um “semiclérigo”, tal era o tom exaltado de sua fala.

Acabara a docilidade. A submissão com que durante décadas Tiradentes aguentara ser mandado explodia agora em praça pública.

E o que exatamente dizia Joaquim quando fazia proselitismo? A predicação variava pouco no conteúdo: em geral, ele começava por pintar as riquezas de Minas (o ouro em especial) e em seguida fazia um contraponto com a pobreza vivida pelos mineiros. De forma didática, explicava que a terra era rica, mas a gente era pobre, porque Portugal, tal qual uma “esponja”, seguia “chupando toda a substância”.

No passo subsequente, ele dava nomes aos exploradores. Com injúrias pesadas, detratava o governador de Minas e seus antecessores, aviltava ouvidores e excomungava ministros da coroa, sobretudo Martinho de Melo e Castro, o idealizador da derrama. Curiosamente, o alferes não atacava a rainha. [...]

Quando pregava, o alferes pouco variava o conteúdo de sua fala, mas equalizava o tom dependendo da origem e da formação de seu interlocutor. Como ele mesmo definia, “seduzia” as pessoas “usando da arte que lhe parecia necessária” em cada circunstância. Semear o medo, por exemplo, mostrou-se uma tática especialmente eficiente. 

No meio de uma conversa frugal, com voz grave, Joaquim lançava a isca: “Pois vossa mercê não sabe ainda o que vai de novidade…?”. Ao que o sujeito, entre curioso e apreensivo, respondia não saber de novidade alguma, ele despejava: na derrama, caberia a cada um dos moradores de Minas —homens, mulheres, idosos e crianças— pagar à coroa oito oitavas (29 gramas) de ouro. 

O cálculo não era oficial, até porque nem mesmo o governo sabia como fazer essa conta. Não havia uma regra escrita. O alvará que criara o instrumento da derrama, de 1750, era vago em relação à divisão do débito. Citava apenas que a partilha da cobrança levaria em conta “a proporção de bens” de cada morador. Ou seja, quem tinha mais pagaria mais, quem tinha menos pagaria menos.

Já ali começam os problemas para seguir adiante com o cálculo. Como avaliar a fortuna ou a pobreza de cada um? Tarefa difícil, já que na capitania, como era sabido, havia homens que ostentavam riqueza e na verdade eram pobres, e outros que pareciam pobres mas eram de fato muito ricos. Dizia-se em Minas que, diante da impossibilidade de aferir o patrimônio de cada um, só os anjos “poderiam acertar no equilíbrio e igualdade da derrama”.

Tiradentes aproveitou a falta de clareza nas regras para confundir ainda mais a população, disseminando como sendo oficial a cota de oito oitavas de ouro por pessoa. Não era pouca coisa. Em geral, um escravo dedicado exclusivamente à mineração levava mais de cinco meses para tirar da terra tal quantidade de ouro, equivalente ao peso de três ovos de codorna. Com um punhado de metal precioso como aquele nas mãos, podia-se comprar 27 porcos.

Após serem pegos de surpresa pelo alferes com a falsa notícia da cota individual da derrama, era inevitável que os moradores começassem a fazer contas. Uma família formada por um casal e quatro filhos, por exemplo, teria de abrir mão de um escravo para saldar a dívida. 

Era um preço alto a pagar, considerando que 60% dos proprietários de escravos em Minas tinham entre uma e dez “peças”. Se a esta mesma família de seis membros fosse concedido pagar a suposta cota à prestação, ela teria de manter um escravo minerando por um ano e meio para saldar a dívida. Uma coisa era certa: em plena decadência da mineração, os mineiros teriam um naco expressivo de seu patrimônio tomado pela Coroa.

Tiradentes manipulava seus interlocutores acenando com o pavor. Em pelo menos uma tentativa de recrutamento, ele anunciou que a cobrança das oito oitavas de ouro já tinha começado. 

O Tiradentes - Uma Biografia de Joaquim José da Silva Xavier

  • Quando Lançamento em julho
  • Preço R$ 79,90 (520 págs.)
  • Autor Lucas Figueiredo
  • Editora Companhia das Letras, 2018

Lucas Figueiredo, jornalista e escritor, é autor dos livros “Morcegos Negros” e “Ministério do Silêncio”.

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