Após deixar cargo em SP, cônsul português lança livro de poesia; leia trecho

Paulo Lopes Lourenço fará sessão de autógrafos na biblioteca Mário de Andrade

Paulo Lopes Lourenço

[SOBRE O TEXTO] Os dois poemas nesta página fazem parte de "Cinematografia", livro de Paulo Lopes Lourenço com ilustrações de Fernando Lemos, que sai pela Ateliê Editorial (R$ 44,90; 128 págs.). O lançamento da obra, primeira do autor a ser publicada no Brasil, acontece no próximo sábado (11), das 11h às 14h, no saguão da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.

 

Ilustração de Pinky Wainer para a Ilustríssima
Ilustração de Pinky Wainer para a Ilustríssima - Pinky Wainer

Novo testamento

Certa vez, uma mulher que era cabelo em desalinho e olhos

escuros, imobilizou a praça

enfeitando-a de perfumes e bailados

e a multidão, apanhada de surpresa, se imaginou transportada

para um jardim de bromélias e amores erguidos onde não havia

portões nem raivas,

E o mundo ali se declarou terminado,

revertido à sua ingenuidade original,

como num conto austríaco: as portadas abertas para poente,

o vento subitamente

amolecido e terno, as ramadas acenando num compasso

indulgente, os grilos no rumorejar quente, enterrado, as violetas

já cobrindo as encostas, uma música fundida no ar rarefeito.

O verão que nos tinham guardado enquanto crescíamos, afinal.

Mas antes de pendurar o óleo suntuoso na parede, alguém acenou

do fundo da rua direita

e, por um curto momento, um clarão atravessou na diagonal

o raio de visão, um ruído abafado ecoou algures

e a vida retomou a normalidade.

Basta uma pequena distração para matar um artista.

 

Diário de bordo

Ainda sobre o tema da partida, talvez valesse a pena reconhecer

que a insistência nele omite o mais temerário tema da chegada  

— esse sim, de onde não resta escapatória.

A partida é a cobardia dos poetas, o seu irreconciliável círculo

virtuoso, de onde se fazem promessas que se cumprem

por meio de novas promessas.

Do Diário de Bordo: "na campânula de vidro abobadado e fino

em que guardamos os bolos, também deve haver espaço para

as palavras, criaturas delicadas mas resistentes ao tempo".

E a chuva se arremessava contra o casco numa telegrafia

preguiçosa em que quase todos detectávamos mensagens

do passado. E, porém, para que falar do alto-mar, no meio

da tempestade? Ainda o ledo engano da criação animada pelo medo,

a inexorável origem do mundo.

De cada vez que regresso à casa, que em cada momento é um

sonho — mesmo quando sobram pedras — uma vida partida

recomeça em busca dos seus pedaços soltos. Cada viagem, cada

paragem, cada largada: não foste nada, nem sequer um voto

de boas festas,

até desembarcares.

Por entre trilhas sonoras ou sinuosas e entre os postais curtos que

ajudam a comprar tempo, que nos servirá de desculpa quando já

não sobrarem despedidas ou naufrágios?

A lembrança mais pungente de um pesadelo, que nos prove termos

dormido.

E vivido.


Paulo Lopes Lourenço é diplomata português, foi cônsul-geral de Portugal em São Paulo de 2012 até 2018. Lançou as coletâneas de poesia "Os Sonhos Imperfeitos" e "Elogio do Amor Negado", ambas publicadas em Portugal.

Pinky Wainer é aquarelista, designer gráfico e professora.

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