Descrição de chapéu Perspectivas

'Artivistas' da internet ganham espaço em museus e galerias

Segundo curador, maioria de trabalhos com teor político carece de rigor formal

Daniel Rangel

No auge da ditadura militar, o poeta Décio Pignatari afirmou: “Nada mais parecido com a guerrilha do que o processo de vanguarda artística consciente de si mesma”. No mesmo período, Cildo Meireles realizou as primeiras versões de “Inserções em Circuitos Ideológicos”. O projeto se tornou um ícone da produção artística engajada —e genericamente chamada de arte-política— dos anos 1970. 

O artista se apropriou de dois sistemas de circulação existentes e que simbolizam o capitalismo —cédulas de dinheiro e garrafas retornáveis de Coca-Cola— para inscrever e espalhar mensagens revolucionárias contra o apoio norte-americano ao governo militar brasileiro. 

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"Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Cédula" (1970), de Cildo Meireles, questionou a morte do jornalista Vladimir Herzog - Divulgação

Cildo é um artista conceitual com enorme consciência política e, junto com outros de sua geração como Antonio Manuel e Carmela Gross e alguns precursores como Pignatari e Hélio Oiticica, tem uma produção marcada por abordagens conceituais feitas com inteligência e aliadas ao rigor formal e estético com forte teor político, muitas vezes introduzido de maneira subliminar. 

Mais de 50 anos após o golpe militar e 40 anos depois de “Inserções em Circuitos Ideológicos”, percebemos que as artes visuais voltam a se aproximar das demandas sociais e políticas. A maioria dos novos artistas que estão na dianteira dessa retomada se coloca como defensora de uma causa, representante dos ideais de um grupo específico, podendo assim assumir o “lugar de fala” em nome deste. 

Temáticas relacionadas a questões de gênero, raça, classe social e político-partidárias começaram gradativamente a ocupar as paredes dos espaços culturais brasileiros nos últimos cinco anos, incluindo as últimas edições da Bienal de São Paulo. 

Museus como o Masp, a Pinacoteca e o MAR e instituições culturais têm promovido importantes exposições com temas de relevância social. Existem ainda os locais centrados nestas questões, alguns menos formais e com estruturas improvisadas, como a Ocupação 9 de Julho, e outros com produção e espaços expositivos de qualidade internacional, como o Galpão Videobrasil. 

Até mesmo as galerias comerciais abriram-se para conteúdos que podem ser considerados polêmicos pelos colecionadores mais conservadores. Recentemente, uma importante galeria carioca promoveu uma espécie de batismo artístico com direito a banheira com água e imersão de corpo inteiro, enquanto outra, no bairro do Jardim Paulista, zona sul de São Paulo, exibiu frases de apoio aos ex-presidentes Dilma e Lula escritas pelo artista em exposição. 

Enquanto parte do mercado incorpora essa produção de caráter mais engajado, outra camada renega o “artivismo” como arte e questiona, sobretudo, a qualidade dos trabalhos, com o que devo muitas vezes concordar.

Boa parte das propostas “artivistas” apresenta narrativas complexas, o que costuma deixar a compreensão das obras restrita ao grupo que representam. Em sua maioria, esses trabalhos são frutos de processos momentâneos e carecem de um discurso artístico coerente e de uma formalização rigorosa.

O “artivismo” segue como um neologismo conceitual que não foi incorporado nem pelo campo artístico nem pelas ciências sociais, encontrando-se ainda nessa fronteira. 

O termo foi primeiramente utilizado como nome de um festival de cinema nos Estados Unidos, em 2003, tendo sido incorporado de forma mais ampla pela academia a partir de 2008.

Sabemos, entretanto, que a relação entre arte e política é bem mais antiga, e a partir de uma leitura ampla, podemos afirmar que todo fazer artístico é essencialmente político, mesmo que não esteja sendo produzido em defesa de algo —aliás, talvez justamente por isso. 

A arte tem o potencial de promover discussões que estão além da sociedade política ou, como bem definiu o crítico Mário Pedrosa, “a arte é um exercício da liberdade”. 

Estamos a poucas semanas da próxima eleição para a Presidência da República, assim como a de governadores, senadores e deputados. A aproximação da disputa, impulsionada por uma polarização nunca antes vista na sociedade brasileira e pela situação de instabilidade político-institucional em que o país se encontra, deve servir como combustível criativo para “artivistas” em geral. 

Desde 2014, uma série de acontecimentos mobilizou a classe artística, seja como um coletivo, seja a partir de obras individuais.

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Notas de dois reais com a inscrição "Quem matou Marielle?", inspiradas em trabalho de Cildo Meireles nos anos 70 - Reprodução

A ameaça de fechamento do Ministério da Cultura logo após o impeachment de Dilma, a defesa da liberdade de expressão artística, a rejeição ao presidente Michel Temer, a revolta contra o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, a violência policial contra negros e pobres nas favelas do Rio de Janeiro e o protesto contra a prisão de Lula foram alguns dos temas explorados pelos artistas em obras e manifestos que se espalharam principalmente pelas redes sociais —ferramentas essenciais para a circulação do “artivismo” hoje. 

E, assim como as “fake news”, que são fonte de preocupação sobretudo durante as eleições, devemos estar atentos à “fake art” para podermos diferenciar os artistas politicamente conscientes daqueles aproveitadores que querem apenas usar a arte para fazer política.


Daniel Rangel, curador, faz mestrado em poéticas visuais na Escola de Comunicações e Artes da USP.

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