Descrição de chapéu Memorabilia

Compreendi teatro ao ver peça com textos de Nelson Rodrigues, diz diretor

Nelson Baskerville escreve sobre montagem de Antunes Filho baseada em obra do dramaturgo pernambucano

Nelson Baskerville

​Desassossego: é o efeito que certas obras provocam em mim —e me fazem continuar. Algumas montagens foram responsáveis por mudanças radicais em meu modo de pensar, ser e fazer teatro; a primeira delas foi "Nelson Rodrigues - O Eterno Retorno", de Antunes Filho, apresentada em 1981.

O diretor Nelson Baskerville com cartaz de "17 x Nelson"
O diretor Nelson Baskerville com cartaz de "17 x Nelson" - Bruno Santos/Folhapress

Vim da cidade de Santos (SP) e decidi ser ator por critérios subjetivos. Primeiro por não me encaixar em nenhum dos moldes oferecidos em minha casa: engenheiro, médico ou advogado.

Segundo porque uma professora de organização social de problemas brasileiros ou organizações e normas (disciplina imposta pela ditadura civil-militar), diante de meu comportamento indisciplinado, ordenou que eu tivesse uma atividade extracurricular, que despendesse minha energia excessiva. Obrigou-me a entrar para o grupo de teatro da escola. Tratava-se do Grupo Farsa.

Nessa época, 1978, minhas referências culturais e de atuação vinham de novelas, filmes e as poucas peças que eram apresentadas em Santos. Eu ainda não fazia ideia do poder que um artista poderia ter sobre um tablado.

Nunca tinha assistido a uma peça de Nelson Rodrigues e compartilhava, por osmose, de certo senso comum segundo o qual ele seria um autor menor, pornográfico, famoso pelas frases desconcertantes na mídia e pelos filmes "escandalosos", como "A Dama do Lotação", de Neville D'Almeida.

Em 1980, com 18 anos, entrei na EAD (Escola de Arte Dramática) da USP, rompendo com os anseios familiares. Lá, fizemos algumas leituras de peças de Rodrigues, e eu estranhava a admiração unânime dos professores e colegas, que vinha de encontro ao meu preconceito.

Certa noite, alguém propôs que faltássemos à aula para assistir ao novo espetáculo de Antunes Filho: "Nelson Rodrigues - O Eterno Retorno". A obra juntava fragmentos de quatro peças do autor: "Toda Nudez Será Castigada", "Álbum de Família", "Os Sete Gatinhos" e "O Beijo no Asfalto". Logo na abertura do espetáculo, a voz de Marlene Fortuna gritava por um gravador de rolo: "Herculano, quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei".

(Posso ouvir o tom e volume daquela voz até hoje... Ainda me arrepio.)

Naquelas quatro horas de espetáculo, entendi o que era teatro e o que eu estava fazendo ali (no planeta Terra). Descobri em mim que não era a fama ou a glória que buscava. Havia alguma coisa a mais.

Aqueles atores eram desconhecidos. José Ferro (meu ídolo e amigo, morto em 2009), Ary França, Marcos Oliveira, Bia Lessa, Tássia Camargo, Lígia Cortez, Salma Buzzar, Walter Portella, Geisa Gama me desconcertavam e me faziam enxergar o tipo de artista que eu queria (e viria a) ser.

Nos anos seguintes, na EAD, tive a oportunidade de trabalhar com artistas incríveis. Com Celso Frateschi, atuei na peça "Dois Homens na Mina", numa lona montada no parque Ibirapuera. Ela se passava dentro de um espaço soterrado por um acidente: Celso interpretava um operário que me acusava, e eu, um engenheiro que defendia a mim e aos patrões.

Naquela circunstância efervescente de enorme desemprego dos anos 80, a plateia, composta principalmente de operários, começou a se manifestar gritando comigo, jogando coisas em nós. Foi a primeira vez que ouvi a palavra "pelego".

Era tamanha a revolta que tivemos de parar a peça e explicar que aquilo era uma encenação para provocar discussões. Tive muito medo. Tempos depois, descobri que fazíamos teatro de agitação e propaganda (agit-prop), à la Piscator.

Em 2005, tive outra experiência definidora: assisti a "Estação Terminal América", de Frank Castorf, livre adaptação de "Um Bonde Chamado Desejo". Sua liberdade em desmembrar o texto de Tennessee Williams e rearranjá-lo, mudando os pontos de vista do autor, abriram em mim as comportas da desobediência e descortinaram possibilidades que me tiraram do textocentrismo ao qual eu ainda me submetia.

Aquele espetáculo foi uma libertação. Foi então que formei a AntiKatártiKa Teatral (AKK), uma companhia de pesquisa de linguagem teatral com a qual encenei, entre outros espetáculos, "17 X Nelson "“ O Inferno de Todos Nós", que costurava cenas das 17 peças de Nelson Rodrigues com alguns dos estágios do inferno de Dante Alighieri.

A partir daí, tanto lá como em outras companhias, tentei me manter fiel na busca de novas linguagens, digamos, mais circunscritas na contemporaneidade.

Em seus "Escritos sobre Teatro", Roland Barthes afirma que só um teatro essencialmente popular poderia recuperar as funções dessa arte para o povo: ser ao mesmo tempo festa e conhecimento, desenlace solene do tempo laborioso e incêndio das consciências.

Em suma, o teatro me ensinou tudo que eu precisava para sobre[e]viver. Acredito na arte como ferramenta de transformação e consciência. E me causa espanto a forma como o teatro, assim como toda a cultura, é tratado pelo Estado brasileiro, que não consegue ou não quer entendê-lo na condição de, também, instrumento de cidadania e fortalecimento da sociedade. 


Nelson Baskerville é ator e diretor, reestreia a peça "Os 3 Mundos" no dia 24/8, no Centro Cultural Fiesp.

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