Descrição de chapéu Memorabilia

É possível amar '2001' mesmo sem entendê-lo, afirma a atriz Maeve Jinkings

Atriz de 'O Som ao Redor' descreve sua relação com o lendário filme de Stanley Kubrick

Maeve Jinkings

Assisti pela primeira vez a “2001 - Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, de maneira quase acidental: estava sendo exibido na TV numa noite de sábado, quando eu tinha por volta de oito anos de idade. Passava pela sala quando fui abduzida pela imagem de homens-macaco que disputavam a posse de uma pequena reserva de água.

Evidentemente, só elaborei isso mais tarde. Mas aquela noite me colocou em contato com minhas primeiras questões de ordem filosófica e existencial.

Se a pouca idade não permitia que eu “captasse” o filme em sua totalidade, a complexidade dessa obra ainda hoje a mantém selvagem e indomável como a própria existência. De significações tão múltiplas e profundas que, mesmo após assistir ao filme muitas vezes, ainda é possível redescobri-lo.

Naquela época, eu já tinha obsessão pelo cosmos e pela possibilidade de vidas extraterrestres. Com meus pais, vi grandes filmes de ficção científica como “E.T. - O Extraterrestre” e “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, ambos de Steven Spielberg

O programa favorito das manhãs de sábado era assistir a “Cosmos”, programa de Carl Sagan sobre a criação do universo. Ainda hoje, se me sinto angustiada, um episódio dessa série provoca em mim um curioso efeito meditativo. 

Mas nada se compara à experiência com o filme de Kubrick, que àquela altura eu não fazia ideia de quem fosse. Ainda guardo comigo a experiência sensorial do que significou ter diante de mim a famosa cena da descoberta da primeira ferramenta ao som de “Assim Falou Zaratustra”, música composta por Richard Strauss, seguida da sequência do osso voando no ar. Em apenas um corte, Kubrick dá conta de milhares de anos de evolução humana.

Com pouquíssimos diálogos em mais de duas horas de filme e uma trilha sonora soberba, é uma experiência visual, musical, filosófica. Muito se fala sobre a dificuldade de interpretá-la. A isso respondo: não tenho a menor necessidade de “entender” o filme. 

Para mim, “2001” não se pretende ser entendido. Talvez o considere o filme da minha vida porque sinto que muitas de minhas escolhas como artista e como ser no mundo estão ligadas a questões que o filme me coloca. Talvez sinta que, ao captá-lo completamente, estarei esgotada e desidratada de possibilidades como indivíduo. 

Realmente acredito nas perguntas, muito mais do que nas respostas. Dia desses me falaram do livro de Arthur C. Clarke, escritor que assina o roteiro da obra junto com Kubrick: lendo o livro eu poderia finalmente “compreender o filme”. 

E, por mais que acredite em sua genialidade, tenho dificuldade de me aproximar do livro com esse propósito. Para mim, o filme será sempre uma outra coisa, isso que não decifro em sua totalidade e de que, afinal, não me aproprio.

Foi também esse filme que me proporcionou a mais incrível sessão de cinema da vida, durante o festival Janela Internacional de Cinema do Recife. Já o havia visto inúmeras vezes na TV aberta ou em DVD, já havia feito muitos trabalhos como atriz, sabia que ver filmes numa sala de cinema é uma experiência radicalmente diferente. Mas aquela sessão foi outra coisa, foi uma experiência religiosa, eu diria.

Jamais saberei dizer se foi a qualidade da cópia, se foi a projeção do maravilhoso cinema São Luiz, se foi a qualidade do público de cinéfilos que lotava a plateia de mais de mil lugares na última sessão de uma noite de sábado. O que se deu ali foi uma comunhão, em silêncio e atenção, num envolvimento absoluto com aquelas imagens e sons. 

Jamais esquecerei a sensação inédita de me sentir abraçada (ou engolida) pela tela e pela música, vendo a luz do filme ser rebatida no tapete vermelho do cinema, enquanto flutuávamos pelo espaço numa valsa “Danúbio Azul”. Sim, estávamos diante da grandeza da vida.

Jamais havia chorado assistindo ao filme da minha vida, mas ali foi diferente. E se jamais poderei captá-lo em sua totalidade, tampouco o havia experimentado na totalidade de sua potência​. Mas no cosmos, num pequeno ponto, há uma sala de cinema. 


Maeve Jinkings, atriz, participou dos filmes “O Som ao Redor” (2012) e “Boi Neon” (2015); na TV, fez “Onde Nascem os Fortes” (2018).

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