Descrição de chapéu Clube da Leitura Folha

HQ conta história de Palmares e mostra conflitos da resistência negra

Lilia Schwarcz escreve sobre livro que será discutido no próximo encontro do Clube de Leitura Folha

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Lilia Schwarcz

[RESUMO] O próximo encontro do Clube de Leitura Folha, na terça (28), às 19h, discutirá o livro "Angola Janga", história em quadrinhos criada por Marcelo D'Salete. O evento será na Casa Plana (rua Fradique Coutinho, 1.139), terá presença do autor e entrada gratuita. No texto a seguir, a antropóloga Lilia Schwarcz, professora da USP e da Universidade Princeton, analisa a obra. 

 

Livros de histórias em quadrinhos costumam ser avaliados com um sinal de “menos”. Seriam menos pesquisados, menos rigorosos, menos importantes que outras obras. Pois o trabalho de Marcelo D'Salete vem provar como esse tipo de comentário não passa de crítica pronta e requentada.

Autor dos excelentes “Noite Luz” (2008) e "Cumbe” (2014), ele agora premia os leitores com “Angola Janga. Uma História de Palmares”. Ilustrador, professor e mestre em história da arte pela USP, Marcelo passou 11 anos pesquisando Palmares e seus vários personagens. O resultado é uma obra que mistura ficção com não ficção de maneira equilibrada e faz da imaginação um raio de possibilidade.

“Angola Janga” se debruça sobre a história do quilombo de Palmares, uma sociedade comunitária e guerreira que, dentre seus vários méritos, sobreviveu por quase cem anos e se impôs como forma alternativa de sociedade.

Com riqueza de detalhes, o livro descreve como escravizados e escravizadas reagiam ao seu cotidiano violento criando várias formas de resistência. Estas eram expressas nas fugas, nos assassinatos e nas insurreições, que, desde o século 16, deram origem a mocambos e quilombos espalhados por todo o território. “Mocambo” significava esconderijo, enquanto “quilombo” era o termo utilizado em certas regiões do continente africano para designar um acampamento fortificado.

A proliferação de mocambos e quilombos na paisagem brasileira criou formas concretas de oposição à ordem escravista, uma vez que eles estabeleciam vínculos fortes com as populações vizinhas, formando redes de informação e laços afetivos e comerciais.

Cada quilombo conta uma boa história. Mas é Palmares que resume a notável tradição de rebeldia escrava. Seu núcleo original surgiu a partir da fuga coletiva de 40 escravizados e escravizadas, que escaparam dos trabalhos forçados em um engenho de açúcar na então província de Pernambuco. E buscaram refúgio em um lugar rodeado por serras, que mais se parecia com uma fortaleza natural.

O espaço protegido ficava no alto da serra da Barriga, atual estado de Alagoas, e guardava mais uma especificidade: estava tomado por palmeiras. A árvore não ajudou apenas na construção das casas. De sua seiva, tirava-se um óleo nutritivo. Além do mais, seus galhos ajudavam a esconder a fortificação. Por essas e por outras, o nome do quilombo virou uma homenagem à planta, que, à sua maneira, acolheu os fugitivos.

Com o tempo, Palmares deixou de ser apenas em um quilombo, transitório, para se transformar numa grande confederação composta por vários núcleos independentes, a despeito de se submeterem a regras comuns.

Dentre eles estavam os quilombos de Acotirene, cujo nome prestava homenagem à matriarca da confederação; o de Dambrabanga, nomeado a partir da alcunha de um dos maiores líderes militares do local; o de Zumbi, título máximo dado ao grande chefe local, uma vez que esse tinha poderes não só militares como também religiosos; o Aqualtune, nome da mãe de Zumbi; o de Andalaquituche, irmão de Zumbi; o de Subupira, espaço onde se instalava a força militar local; e, finalmente, a Cerca Real do Macaco, o maior dos núcleos e também o mais destacado.

Era por lá que atuava o comando geral de Palmares e onde se reuniam os líderes dos vários quilombos congregados para tomar decisões em tempos de paz (como impostos e regras de comércio e de convivência) e mesmo de guerra, contra as elites coloniais por vezes holandesas, por vezes portuguesas.

Por fim, era também lá que residia a principal autoridade —“Ganga Zumba”, cuja expressão significa “Chefe Grande”, aquele que tomava assento para presidir o conselho formado pelo conjunto dos líderes dos diversos quilombos.

A maior parte dos palmarinos originais era procedente da atual República Democrática do Congo e de Angola. E foram justamente esses primeiros moradores que deram ao local o nome de “Angola Janga” —a “pequena Angola”. Esse é também o título do livro de D’Salete, que mostra como essa confederação de quilombos representava uma espécie de reinvenção da África na América portuguesa, com uma vida comunitária administrada por leis próprias, formas de governo, estrutura militar e princípios religiosos.

Já as autoridades coloniais logo reconheceram em Palmares um enclave. Não era para menos —em seu momento de pico, a confederação chegou a contar com 20 mil habitantes, sendo que, apenas na Cerca Real do Macaco, habitavam 6.000 pessoas, o que praticamente igualava a  população que morava no Rio de Janeiro, nesse mesmo contexto, calculada em 7.000 almas.

O livro de D’Salete se centra, sobretudo, na máquina de guerra criada com o intuito de massacrar Palmares. Mas o leitor verá como a missão dos portugueses não foi fácil. A primeira expedição data de 1612; a última, de 1695.

E se D’Salete nos conta, com riqueza de detalhes, essa luta pela liberdade, outro grande mérito da obra é não apostar numa história só elevatória. São evidentes os momentos de ruptura interna, como em 1678, quando representantes portugueses e uma comitiva de rebeldes enviados por Ganga Zumba reuniram-se no Recife para fechar o tratado de paz proposto pelo governo.

O quadrinista Marcelo D'Salete
O quadrinista Marcelo D'Salete, vencedor do prêmio Eisner - Rafael Roncato/Divulgação

O acordo previa devolver os cativos (os moradores que não tivessem nascido nos quilombos), trincando assim a confiança entre quilombolas e escravizados. Em troca, a Coroa garantia alforria, terras sob a forma de sesmarias e foro de vassalos para os palmarinos.

O acordo levou a graves consequências e acabou dividindo, também, Ganga Zumba e Zumbi. Além de gerar uma guerra interna, o pacto opôs as duas grandes lideranças, o que resultou na morte Ganga Zumba por envenenamento e no assassinato de seus principais companheiros.

Mesmo assim a paz não reinou no local. Seguiram-se 15 anos de guerras, uma vez que as autoridades das colônias não se conformavam com a existência de um modelo mais igualitário e que, inclusive, começava a competir em acordos comerciais e nos tratados de paz com indígenas da região. A Cerca Real do Macaco foi a última a resistir. Junto com ela viriam a execução de Zumbi e a total destruição da confederação de quilombos dos Palmares.

O livro de Marcelo D’Salete narra essa verdadeira saga, incluindo personagens ficcionais e dando vida à nossa imaginação. Faz mais: apresenta um glossário com termos africanos e de época, um ensaio tão pessoal como esclarecedor e uma cronologia da guerra.

O apuro na investigação fica evidente, também, no estilo do artista: na caracterização das fazendas, dos quilombos, da natureza e dos armamentos; na linguagem compartilhada e na definição dos personagens. Destacam-se as expressões dos protagonistas, a complexidade dos rituais, a riqueza das indumentárias, os penteados, as escarificações e marcas no corpo. 

Se a história desse quilombo vem sendo vasculhada pela historiografia, essa é a primeira vez que, com tanto rigor e sem concessões, vemos surgir líderes que só nos era possível idear.

“Angola Janga” devolve aos brasileiros novos heróis e modelos de história. Palmares não vira apenas símbolo da luta das populações negras —representa uma nova interpretação do Brasil, que mostra a agência dos africanos e africanas, libertos e libertas, escravizados e escravizadas, suas conquistas e como jamais se acomodaram ao regime de privações que foram obrigados a enfrentar.

Palmares é um ícone para a construção de outras histórias e memórias do país. Com “Angola Janga” ele ganha, finalmente, imagem e imaginação.


Lilia Schwarcz, professora titular do Departamento de Antropologia da USP e global scholar na Universidade de Princeton (EUA), é organizadora, com Flavio Gomes, de “Dicionário da Escravidão e da Liberdade: 50 Textos Críticos" (Companhia das Letras).

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