Livro destaca escritoras que adotaram posições críticas ao feminismo

Autoras também ajudaram a fomentar cultura das revistas literárias americanas

JULIANA DE ALBUQUERQUE

[RESUMO] Livro lançado nos EUA e na Inglaterra destaca autoras que tiveram a coragem de adotar posições dissidentes diante de eventos históricos, movimentos sociais e ideologias. Entre as características que unem muitas delas está a crítica ao feminismo

 

Questionada sobre o caráter problemático e, muitas vezes, antifeminista de suas heroínas, Simone de Beauvoir respondeu que a sua tarefa enquanto escritora era criar personagens que apresentassem ao leitor um leque de reações possíveis aos dilemas de cada mulher e às situações de opressão experimentadas por elas no cotidiano.

A autora considerava a verossimilhança de suas protagonistas uma característica essencial para promover a literatura enquanto exercício capaz de descrever não só a ambiguidade que permeia a experiência humana mas também como ela interfere na formação do sujeito.

Em "Os Mandarins", romance baseado na vida intelectual francesa do pós-Segunda Guerra, Beauvoir desenvolve esse raciocínio ao discorrer sobre a dificuldade de mulheres de diferentes idades, profissões e classes para usufruir certo grau de autonomia ao mesmo tempo em que se esforçam para atender uma série de exigências sociais em relação a seus corpos e modos de vida. São os casos da personagem Paula Maureil, aterrorizada pelo envelhecimento e pelo crescente desinteresse do amante, e da intelectual Anne Dubreuilh, espelhada na autora.

Assim, nos romances de Beauvoir, as personagens femininas não poderiam ser perfeitas porque o mundo estaria longe de sê-lo. Transformar a mulher em um modelo de perfeição seria negar-lhe a possibilidade de assumir riscos e cometer erros, condenando-a a uma posição de virtuosismo moral permanente. Seria o mesmo que mantê-la na situação de menoridade e insignificância cultural alimentada pelo machismo.

Parece ser nesse sentido que Michelle Dean escreve sobre uma série de autoras do século 20 responsáveis por inovações na escrita jornalística e que transformaram em arte: a crítica, o ensaio documental e o comentário político.

Lançado em abril nos Estados Unidos e na Inglaterra, "Sharp: The Women Who Made an Art in Having an Opinion" (afiadas: as mulheres que fizeram do opinar uma arte) introduz o leitor no universo de escritoras como Dorothy Parker, Rebecca West, Mary McCarthy, Hannah Arendt, Susan Sontag e Joan Didion, buscando analisar o que as teria estimulado a adotar posicionamentos dissidentes diante de eventos históricos, movimentos sociais e ideologias políticas —posicionamentos que, com frequência, deram origens a escândalos dentro e fora de suas comunidades.

Um exemplo é o conhecido texto de Hannah Arendt (1906-75) publicado na revista norte-americana The New Yorker em 1963, no qual ela cunhou a expressão "banalidade do mal" ao escrever sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. A filósofa viu-se acusada de simpatizar com o inimigo nazista, pois a expressão levaria à conclusão de que atrocidades (como o Holocausto) não seriam perpetradas por monstros, mas por pessoas comuns que se abstêm de pensar por conta própria.

Essa crítica se somava à de que Arendt estaria responsabilizando as autoridades judaicas pelo extermínio em massa na Europa. Em seu artigo, hoje publicado como livro ("Eichmann em Jerusalém", Companhia das Letras), ela propôs uma tese polêmica: "Onde quer que vivessem judeus, havia líderes judaicos reconhecidos, e essa liderança, quase sem exceção, cooperou, de um modo ou de outro, por uma razão ou por outra, com os nazistas. A verdade é que, se o povo judeu estivesse realmente desorganizado e sem líder, teria havido o caos e muita miséria, mas o número total de vítimas mal teria chegado a algo entre 4,5 milhões e 6 milhões de pessoas".

Os duros ataques partiram de muitos de seus amigos e colegas, como o filósofo e historiador Gershom Scholem, que caracterizou o posicionamento de Arendt como expressão de desamor ao povo judeu. A crítica foi reproduzida na reação de Kurt Blumenfeld, ex-secretário da Organização Sionista Mundial e mentor político da filósofa no entreguerras.

Ela, porém, não se intimidou com as críticas e não pediu desculpas aos amigos nem ao movimento sionista —atitude que, segundo o jornalista israelense Amos Elon, retumbou na sua excomunhão tácita. Arendt preferiu defender o ponto de vista que, por ser tão denso e controverso, ainda alimenta uma série de excelentes discussões acadêmicas. Uma delas é a recente análise oferecida pela historiadora e filósofa alemã Bettina Stangneth em "Eichmann Before Jerusalem: The Unexamined Life of a Mass Murderer" (Eichmann antes de Jerusalém: a vida não examinada de um assassino em massa).

De acordo com Stangneth, a descoberta de novos documentos sobre o oficial da SS (milícia nazista) revela uma personalidade muito mais complexa do que aquela descrita por Arendt durante a cobertura do julgamento e, segundo a historiadora, muito provavelmente colocaria em xeque a tese arendtiana sobre a banalidade do mal.

A força de uma ideia, no entanto, talvez esteja justamente na capacidade de renovar-se diante das mais diversas críticas, preparando terreno para uma série de outras formas de interpretar o mundo e a condição humana. A história da filosofia é repleta de movimentos semelhantes, em que concepções do passado ganham ou perdem vigor através de um exercício constante de avaliação e reformulação.

Engana-se quem acha que o êxito cultural de uma ideia se deve à coerência intelectual de um pensador ou de uma figura pública, como se o mundo fosse uma sala de aula dominada por cabeças de ferro em busca de incontestável aprovação.

Grandes pensadores como Kant, Hegel, Marx, Nietzsche e Freud entraram para a história não porque reprisaram uma resposta conveniente na prova da escola, mas porque tiveram a coragem de pensar diferente. O mesmo pode ser dito de grandes pensadoras como Beauvoir e a própria Arendt. Assim, o que definiria o projeto intelectual dessas mulheres seria, antes de tudo, a coragem para enfrentar todo e qualquer tipo de impopularidade.

Neste ponto, vale ressaltar que o risco de impopularidade sempre acarretou consequências mais graves para as mulheres do que para os homens. De acordo com a historiadora britânica Mary Beard, autora de "Mulheres e o Poder", isso é produto de uma educação política em que a retórica e o exercício da vida pública foram transmitidos de uma geração para a outra como valores masculinos por excelência.

Uma sequela dessa herança cultural é a dificuldade de aceitar a autoridade das mulheres, seja em queixas de violência física ou moral, seja no exercício da vida pública ou intelectual. Recorde-se, quanto a este último aspecto, o relato de Beauvoir sobre as mensagens hostis que recebeu ao publicar "O Segundo Sexo" em 1949: "Mal-amada, fria, fálica, ninfomaníaca, lésbica, cem vezes abortada". Críticas voltadas à sua pessoa que repercutem até hoje e que, durante muito tempo, obstaculizaram o reconhecimento da sua obra como parte do cânone filosófico ocidental.

Essa coragem para enfrentar os riscos de impopularidade é a característica que une todas as dez escritoras mencionadas por Michelle Dean em "Sharp".

A americana Dorothy Parker (1893-1967) teve a audácia de escrever algumas das críticas mais mordazes e deliciosas sobre a cena cultural de seu país nos anos 1920, inclusive comprando briga com um jovem autor em ascensão: Ernest Hemingway.

A escritora inglesa Rebecca West (1892-1983) foi uma das primeiras vozes de esquerda a denunciar os excessos revolucionários de comunistas na Europa Oriental.

Íntima de Arendt, Mary McCarthy (1912-89) foi durante muito tempo uma das críticas literárias mais temidas e respeitadas dos Estados Unidos. De caráter independente, ela se opunha a pertencer ao movimento feminista. Ainda assim, o pesquisador Thomas Mallon, editor da obra completa de McCarthy para a coleção Library of America (biblioteca da América), afirma que seus textos de ficção revelam uma voz naturalmente inclinada ao feminismo. Exemplo disso é o seu romance "O Grupo", sobre oito amigas de formação universitária cujos relacionamentos familiares e profissionais com homens impõem obstáculos ao exercício da autonomia feminina.

A suspeição diante do feminismo também une boa parte das escritoras analisadas por Dean, embora a postura crítica dessas mulheres perante o movimento não se traduza em uma posição reacionária.

Cada uma delas possui uma relação única com percepções e momentos distintos do feminismo. No capítulo sobre West, sabe-se de seu envolvimento com sufragistas inglesas que ela própria considerava pudicas e, depois, com o jornal Freewoman (Mulher Livre), um espaço em que as autoras podiam escrever sem adotar os bordões da propaganda sufragista. A passagem de uma visão de feminismo para outra provoca no leitor a reflexão de que, para ser saudável, qualquer movimento social deve abarcar vozes dissidentes.

No capítulo sobre Susan Sontag (1933-2004), por sua vez, temos a impressão de encontrar uma personalidade complexa e sedutora, cujo brilhantismo intelectual e exuberância criativa fogem a qualquer tentativa de classificação. Ensaísta, romancista, cineasta, crítica cultural e correspondente de guerra, Sontag dizia-se militante feminista, e não feminista militante.

Em "Regarding Susan Sontag" (sobre Susan Sontag), documentário produzido pelo canal PBS, Eva Kollisch, escritora norte-americana de origem austríaca, reflete sobre essa questão: "O feminismo nunca ajudou Susan em nada. Ela já tinha conquistado o direito de ser uma grande mulher. O feminismo deve ter reduzido a sua esfera de atuação, porque de repente ela teve que se identificar com todas essas outras mulheres".

No entanto, pergunto-me se, em vez de denunciar um poderoso senso de excepcionalidade, o afastamento crítico de Sontag em relação ao feminismo militante seria, isto sim, revelador de uma atitude de responsabilidade intelectual.

Por exemplo, no ensaio "Fascinante Fascismo", publicado na coleção de artigos chamada "Sob o Signo de Saturno" (ed. L&PM), a autora comenta a problemática inclusão de Leni Riefenstahl (diretora de filmes de propaganda nazista, como "O Triunfo da Vontade" e "Olympia") entre as cineastas mencionadas no cartaz do Festival de Cinema de Nova York de 1973: "As feministas sentiriam uma pontada [de insegurança] ao sacrificar o nome de uma mulher que dirigiu filmes tidos por excelentes. Mas o ímpeto da mudança de atitude em relação a Riefenstahl deve-se à renovada sorte da ideia de beleza".

Sontag refere-se à miopia moral de determinados movimentos sociais que, ao tentar levantar uma bandeira de inclusão a todo custo, acabam dissociando uma obr-a de sua mensagem original. No caso em tela, não seria a representação do belo em si que estaria em jogo, mas o questionamento sobre o belo a serviço de uma ideologia responsável pelo extermínio em massa de judeus e outras minorias.

Apesar desse puxão de orelha, Sontag também escreveu uma série de ensaios de mensagem feminista, como "The Third World of Women" (o terceiro mundo das mulheres), "The Double Standard of Aging" (o duplo padrão de envelhecimento) e "A Woman's Beauty: Put Down or Power Source" (a beleza de uma mulher: fraqueza ou fonte de poder), todos reunidos no primeiro volume de seus ensaios completos, editado por seu filho, o escritor David Rieff, para a coleção Library of America.

Seus textos mais importantes, todavia, analisam uma porção de outras questões cruciais para a compreensão da contemporaneidade. As mensagens sobre a cultura popular em "Notas sobre Camp" e "Sobre Fotografia", por exemplo, permanecem ótimas fontes de inspiração para leitores interessados em saber como as expressões da contracultura gay se tornaram convencionais, ou como a antiga concepção de autorretrato foi transformada pelo fenômeno da selfie.

Nesse diapasão, embora o livro de Michelle Dean não traga informações exaustivas sobre as suas personagens, ele serve como ótima introdução à vida e à obra de algumas mulheres que, escrevendo em publicações como Partisan Review, The New Yorker e The New York Review of Books, contribuíram para firmar a cultura das revistas literárias norte-americanas. Também serve como crítica à visão deturpada de que a contribuição de mulheres intelectuais estaria presa à expressão de suas experiências vividas: ninguém deve sentir-se obrigada a escrever sobre gênero e feminismo pelo simples fato de ser mulher.

Outra crítica implícita no livro é a de que nem sempre o conceito de sororidade se aplica aos relacionamentos entre mulheres. "Sharp" traz histórias de amizade, cooperação e —principalmente— de rivalidade entre as personagens.

Por outro lado, vale evidenciar a escassa referência a autoras negras entre as personalidades destacadas por Dean. Ela dedica apenas algumas poucas páginas à trajetória da escritora e antropóloga Zora Neale Hurston, autora do romance "Seus Olhos Viam Deus" (Record).

Se um dos principais critérios para escolher as personagens de "Sharp" foi introduzir o leitor na obra de escritoras que se mantiveram ativas durante toda a vida, por que não aproveitar a oportunidade para apresentar ao público uma multidão de vozes a serem ouvidas? 


Juliana de Albuquerque é doutoranda em filosofia e literatura alemã pela Universidade de Cork (Irlanda) e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv (Israel).

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