Descrição de chapéu Memorabilia

Minczuk e a alegria de ver salmos ganharem música pelas mãos de um gênio

Maestro conta sensação de ouvir pela primeira vez 'Chichester Psalms', de Leonard Bernstein

Roberto Minczuk

Quando eu tinha nove anos, meu pai, professor e maestro que me introduziu na música, me inscreveu na Escola de Música de São Paulo. Na ocasião, precisei escolher um instrumento para estudar. Minha primeira opção foi a harpa, igual à que, segundo a Bíblia, o rei Davi tocava. Meu pai acabou me convencendo a adotar a trompa, que se tornaria minha especialidade, mas o fascínio pelo personagem bíblico nunca passou. ​

Roberto Minczuk, diretor musical e maestro do Theatro Municipal de São Paulo
Roberto Minczuk, diretor musical e maestro do Theatro Municipal de São Paulo - Gabriel Cabral/Folhapress

Todas as noites, antes de dormir, eu lia um salmo escrito por Davi. Sempre me identifiquei com o personagem e encontrei beleza naquela poesia. De acordo com a história bíblica, ele também era um instrumentista muito hábil.

Todos aqueles versos foram escritos para serem tocados e cantados, são músicas. No entanto, não sabemos como elas foram originalmente executadas, não temos um registro dessas canções, criadas há cerca de 3.000 anos.

Quando encontrei “Chichester Psalms” (salmos de Chichester), obra do maestro e compositor americano Leonard Bernstein (1918-90) baseada nos textos dos salmos 2, 23, 100, 108, 131 e 133, surgiu em mim um sentimento de alegria profunda por ver essas palavras, com as quais convivo desde pequeno, ganharem música nas mãos de um gênio. 

Enxergo muitas semelhanças nas trajetórias de Davi e de Bernstein. Uma delas é o caráter multifacetado da obra que os dois deixaram. 

Davi surge como um pastor de ovelhas, trabalhando no campo. Imagino que muito do tempo livre dele tenha sido usado para aperfeiçoar sua escrita, sua música e até as habilidades de luta, enquanto defendia os animais que pastoreava. 

Vemos reflexos disso quando ele enfrenta o gigante Golias ou quando lemos o salmo 23, que trata da natureza de uma maneira que só quem estivesse em um ambiente como o dele, propício para se inspirar e exercitar a criatividade, poderia tratar. 

Os versos que ele criou são autênticos e muito bem construídos. Davi se aproxima das outras pessoas e não esconde nada —essa é uma marca dele. Mostra as virtudes, mas também o arrependimento. Gosto desses textos também porque eles falam da possibilidade de redenção.

Bernstein foi um personagem muito moderno e próximo das pessoas, como o rei bíblico. É, para mim, o maior músico americano de todos os tempos, maior até do que Gershwin ou Cole Porter. 

Assim como Davi, ele entendeu o espírito do seu tempo e superou regras e leis estabelecidas. Além de ser músico e compositor —escreveu sinfonias, óperas, música de câmara e musicais da Broadway—, foi também um dos maiores maestros da história e um dos melhores pianistas do seu tempo. Ele transitava com muita facilidade entre mundos diferentes, como o do jazz, o da música popular, o da música clássica, o das artes plásticas, e convivia com pessoas muito diferentes entre si. Era um humanista e um educador.

Essa mistura também está em “Chichester Psalms”. Uma obra sacra, como fizeram Bach e Händel, baseada em textos religiosos, mas que, ao mesmo tempo, consegue trazer elementos de musicais como “West Side Story”, composto também por Bernstein. Há ainda um pouco de jazz ao lado de componentes de canto gregoriano. Ele uniu tudo isso de uma maneira muito natural, que faz sentido quando é tocado e que traz satisfação estética.

Quando estudei na Juilliard School, em Nova York, conheci pessoalmente Leonard Bernstein, toquei com ele e tive o privilégio de frequentar os seus ensaios durante seis anos. Era um dos maestros que mais me fascinavam, e eu sabia que precisava aprender com ele.

Já conduzi muitas obras de Bernstein, mas, pela primeira vez, nos dias 24 e 25 deste mês, finalmente vou reger “Chichester Psalms”, que foi escrita em três partes para grande coro e orquestra como uma encomenda da catedral de Chichester, de Sussex (Inglaterra), em 1960. 

Para mim, é um momento único poder conduzir essa composição e ser coadjuvante ao dar vida para a obra do gênio que Bernstein foi. 

O espetáculo, que acontece no Theatro Municipal de São Paulo, ganhou o nome de “Gala Bernstein” e será uma homenagem ao centenário do compositor americano, comemorado no próximo dia 25.

Depoimento a Everton Lopes Batista.


Roberto Minczuk é maestro titular da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e da Filarmônica do Novo México, nos Estados Unidos.

 

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.