'Minha geração vive a angústia de um tempo que não chega', escreve millenial

Nascido em 1990, autor reflete sobre sensação de estar entre o mundo analógico e o digital

Felipe Arrojo Poroger

​​[RESUMO] Autor reflete sobre angústias dos millenials (nascidos entre o início dos anos 1980 e meados dos 90), que viveram no mundo analógico apenas o suficiente para se lembrarem dele como idealização de uma época perdida.

 

A casa de meus avós vai virar uma "high school". Assim, em inglês, talvez na esperança de que a embalagem estrangeira possa envaidecer os novos "students" e suas "families". "Uma high school", repetiu a moça para quem entreguei as chaves daquele portão, na frente do qual tantas vezes meus avós acenaram enquanto meu carro se distanciava.

"High schools", "pet shops", "spas", "coworking spaces": as casas de nossos avós estão ganhando "letterings". E a nós, os millenials, forçados desde a infância a nos desacostumar com o passado e a cultuar as novidades, permanece totalmente estranho ter com o tempo uma relação que se não viva como degradação ou angústia.

Tão cedo tivemos que desenvolver a nossa sociabilidade virtual, tão logo abandonamos o pouco analógico que ainda sobrevivia sem ajuda de aparelhos e, claro, tão evidente é quanto isso nos distingue: talvez sejamos mesmo a última geração a ter conhecido, nem que por um instante, o valor do corpo a corpo, a experiência da comunhão, o último respiro de um mundo pré-virtual.

Usuário de rede social faz login no Facebook pelo telefone celular
Usuário de rede social faz login no Facebook pelo telefone celular - AFP

Com alguma dificuldade, ainda é possível nos lembrarmos dos almoços sem distrações digitais —nos quais éramos incentivados a escutar e a falar—, das brincadeiras que exigiam apenas a fantasia da imaginação, das narrativas que tivemos que criar para completar as lacunas de um mundo que parecia não escancarar tanto a sua autossuficiência.

Conhecemos esse mundo, é certo, porém apenas o suficiente para que, hoje, o passado se construa não tanto como fonte para pensar o presente, mas sim como idealização fantasiosa de uma época perdida.

Cresce em nós a saudade difusa que assombra cada passo, crescem juntos os signos utilizados para expressá-la quando possível: não é curioso que a hashtag #tbt (throwback thursday, ou quinta-feira do regresso, empregada para demarcar nostalgia em determinada postagem) seja uma das mais usadas em algumas redes sociais?

Ávidos por lembrar, ainda que acostumados, forçados e criados para esquecer, somos cobaias e signatários de uma nova vida na qual a realidade se desloca também para os "stories" de Instagram, para lembranças que se autodestroem em um dia de vivência. Quando a novidade enfim se torna guia único de conduta, tudo o que envelhece, que enfeia e que, portanto, se humaniza, se transforma em trauma.

Não à toa, no último 14 de junho, o jornal americano The New York Times noticiou, como tem sido comum nos principais meios de comunicação, o crescimento alarmante de índices de depressão e pensamentos suicidas em jovens. Nesta Folha, em 1º de agosto, lia-se "USP tem quatro suicídios em dois meses e cria escritório de saúde mental para alunos".

Virou cotidiano: na multidão de selfies e relatos pessoais de hora em hora —com suas vogais triplicadas e exclamações a perder de vista—, nós, os anônimos com vocação pública, obrigados a nos destacar dentre mil alteridades felizes, parecemos os únicos solitários a circular em um mundo eufórico. E se a falta de um passado nos assombra e multiplica nossos fantasmas, o excesso de presente, com suas promessas e exigências, acaba por nos esgotar.

Em meados de 2009, no começo da ebulição das redes sociais, o acadêmico Viktor Mayer-Schönberger, professor de governança e regulação da internet na Universidade de Oxford, lançou o livro "Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age" (deletar: a virtude de esquecer na era digital), no qual defendia, não sem motivos, uma tese aparentemente oposta: o terceiro milênio é a época da "morte do esquecimento".

De acordo com a obra, vivemos um tempo que insiste em lembrar demais: nossos dados, nossas histórias, nossas imagens circulam e são registradas em todos os microespaços da internet; a memória digital se expande a cada segundo, a cada post, trazendo consigo consequências sociais nefastas.

Fazem parte dessa "morte do esquecimento", por exemplo, as milhares de pessoas que foram marginalizadas pela sociedade devido a registros de sua vida armazenados na internet. É o caso de Stacy Snyder, então com 25 anos, aspirante a professora, cuja licenciatura foi negada pela universidade devido a uma foto por ela postada anos antes, na qual aparecia bêbada.

O esquecimento, nesse caso, não deveria ser um direito, uma necessidade? Sim, ele responde. Deveria Snyder sofrer esse tipo de consequência por uma postagem antiga, despretensiosa? Não, é claro, afinal esse acúmulo de dados da era digital "nega a nós, humanos, a chance de evoluir e aprender, nos deixando impotentes diante de duas opções igualmente problemáticas: um passado permanente e um presente ignorante".

Duas opções igualmente problemáticas, é com isso que sobramos. De um lado, a memória digital criando uma infindável biblioteca pública e privada de nossas ações. De outro, a morte do passado como elemento fundamental de um tempo que se estrutura na novidade. No meio do processo, nós e nossa completa desorientação do que afinal significa o ato de lembrar.

Se é verdade, como também diagnostica Mayer, que a era digital nos sufoca com excesso de memória, não é menos evidente que do acúmulo nasce a banalização e, com ela, o esgotamento de nossas reais capacidades mnemônicas. O que, então, parecia paradoxal revela-se tão somente relação de causa e efeito: lembrar demais é o mesmo que não lembrar; é o mesmo que impossibilitar que uma experiência se destaque das demais e possa servir de auxílio ao presente quando o momento carecer.

Pelo excesso ou pela falta, o resultado é o mesmo: a atrofia do valor do passado e a transformação do tempo em mero dado estatístico, perdido no universo digital, na aparência de que a memória do Google irá nos redimir.

Millenials. Em inglês, é bonito. Em português —se ainda for permitido usá-lo—, é didático. Aqui, nos tomam por Geração Y: jogados quase no fim do alfabeto, no fim do milênio, de um tempo que nunca se materializa, dos desejos que nunca se saciam à espera de algo talvez melhor, nascemos para ser a materialização do quase.

E assim, enquanto a vida se highschoolariza, uma geração, já à beira dos 30, desaprende a lembrar, enquanto agarra seus minutos nas telas de um celular.

No fim, a escola que surgirá na casa de meus avós talvez nem tenha um playground, e a funcionária para quem entreguei as chaves disse que tomamos a decisão certa. 


Felipe Arrojo Poroger é cineasta, graduado em filosofia pela USP, com passagem pela Universidade de Torino, diretor do Festival de Finos Filmes e nasceu em 1990.

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