Mundo das artes é sexista, diz curadora de exposição sobre mulheres

Mostra que chega à Pinacoteca do Estado de SP aborda invisibilidade de artistas latino-americanas

Cecilia Fajardo-Hill

[RESUMO] Uma das curadoras da exposição "Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana,  1960-1985" problematiza práticas da história da arte. Ela afirma que sexismo e preconceito, entre outros fatores, levaram o sistema a desconsiderar trabalhos relevantes de artistas do sexo feminino. A mostra estará em cartaz na Pinacoteca de São Paulo a partir de 18/8.

 

A própria necessidade de organizar uma exposição histórica sobre gênero evidencia um vácuo no sistema da arte. Há séculos as mulheres têm sido sistematicamente excluídas ou apresentadas de formas estereotipadas ou tendenciosas, e várias das estruturas de preconceito e exclusão ainda prevalecem.

A realidade é que muito mais mulheres participaram da formação da arte do século 20 do que o número normalmente contabilizado. Essa desvalorização ocorre em parte devido ao sexismo e a um sistema que julga a qualidade do trabalho de um artista com base em sua visibilidade e seu sucesso, resultados que, com frequência, são negados às mulheres.

Por exemplo, a artista mexicana feminista Mónica Mayer, que trabalha desde os anos 1970, só recebeu o reconhecimento merecido em 2016, com uma retrospectiva no Museu Universitário de Arte Contemporânea, na Cidade do México.

É irônico que as qualidades que têm sido celebradas na arte do século 21 —o posicionamento contra a ordem estabelecida, o experimentalismo, a originalidade e o não conformismo— muitas vezes não se apliquem quando se trata de artistas mulheres. Um preconceito primordial é que elas simplesmente não seriam tão boas quanto os homens. Portanto, a pergunta crucial, "onde estão as artistas mulheres?", acaba sendo ignorada.

No século 20, artistas latino-americanas exerceram papel fundamental na formulação das linguagens artísticas. No entanto, nos relatos e nas exposições que servem como grandes referências, os homens são os configuradores da história.

Apenas algumas mulheres foram escolhidas para representar o meio artístico, sendo destacadas repetidas vezes: Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Amelia Peláez, representantes do início do modernismo; Leonora Carrington, María Izquierdo, Frida Kahlo e Remedios Varo, do surrealismo; Lygia Clark, Lygia Pape, Gego e Mira Schendel, do neoconcretismo e do abstracionismo geométrico; e Ana Mendieta, Marta Minujín e Liliana Porter, da arte conceitual e experimental.

Menos de 20 representam centenas de artistas mulheres, muitas vezes inclassificáveis, partes intrínsecas e importantes de nossa história.

Chama a atenção que artistas mulheres tenham ganho visibilidade sob os emblemas do surrealismo, do abstracionismo geométrico e, mais recentemente, da pop art. Todos esses movimentos permitiram o apagamento ou a conformação das mulheres a parâmetros existentes. Em particular, a abstração é bastante confortável devido à sua natureza aparentemente neutralizadora ou ausente de questões de gênero.

Entre os estereótipos que definiram artistas mulheres na América Latina está a própria invisibilidade. Muitas vezes, artistas mulheres, tais como Mercedes Pardo (esposa de Alejandro Otero) ou Lola Álvarez Bravo (esposa de Manuel Álvarez Bravo), foram colocadas em uma posição de invisibilidade pelo simples fato de serem casadas com artistas reconhecidos.

Outro estereótipo comum é aquele da mulher louca, histérica e vitimada, como é o caso de Frida Kahlo e, em alguma medida, o de Ana Mendieta.

Também difundida é a noção das mulheres como artistas de menor qualidade ou kitsch, com base na ideia usual de que sua estética é de mau gosto e intragável e de que as questões que abordam (tais como a domesticidade, a sexualidade e a exclusão social) não são importantes.

Ainda há a ideia errônea e generalizada de que o papel das mulheres como mães as impede de serem artistas relevantes e comprometidas.

Por último, qualquer trabalho associado ao feminismo tem sido visto apenas como arte de má qualidade.

Em muitos casos, artistas homens adotaram atitude de desdém em relação às colegas do sexo feminino, contribuindo para seu isolamento e sua invisibilidade. Álvaro Barrios, em entrevista com Miguel Ángel Rojas, usa o exemplo do suposto desaparecimento de Sara Modiano da esfera da arte, por volta de 1987, para demonstrar sua irrelevância e falta de comprometimento. Na verdade, ela nunca parou de trabalhar, e a prova disso são as várias ideias e desenhos que continuou a desenvolver em seus cadernos.

Dois autores imprescindíveis, responsáveis pela construção da história da arte latino-americana, são Marta Traba e Damián Bayón.

Traba exerceu décadas de influência na definição daquilo que a arte latino-americana deveria ser e, portanto, constituiu um cânone. Em livros essenciais, como "Dos Décadas Vulnerables en las Artes Plásticas Latinoamericanas, 1950-1970" (duas décadas vulneráveis nas artes plásticas latino-americanas), de 1973, e em ensaios como "La Cultura de Resistencia", de 1971, ela desenvolveu suas noções de arte de resistência, uma arte que fosse relevante para a sociedade e para seu contexto nacional e continental.

Ela era contra uma arte moderna neutra, que mimetizasse tendências internacionais, tais como a arte cinética e grande parte da arte abstrata, e que fosse, assim, dependente e colonialista. Também se opunha a qualquer forma de indigenismo ou folclorismo.

Embora tenha escrito sobre várias mulheres para publicações na imprensa e em catálogos e brochuras de menor importância, muitas dessas artistas não foram incluídas nas narrativas mais amplas e influentes de seus livros, nos quais os protagonistas eram sempre homens, com exceção de Amelia Peláez. Artistas como Beatriz González e Feliza Bursztyn foram apoiadas por Traba na Colômbia, mas tiveram presença limitada em seu discurso latino-americanista mais abrangente.

Damián Bayón, em seu livro "Aventura Plástica de Hispanoamérica" (1974), promove as artistas Raquel Forner, María Luisa Pacheco e Amelia Peláez e menciona outras poucas mulheres em notas de rodapé, em uma história dominada por homens. Ele não fomenta o surrealismo: descreve o trabalho de Kahlo como "enfermo" e sugere que sua loucura era "transmissível". Ele não era contra a abstração, fazendo breves menções positivas a artistas como Lilia Carrillo, Elsa Gramcko, Sarah Grilo e Luisa Richter.

Internacionalmente, foram realizados vários estudos sobre a arte latino-americana que definiram o campo.

A exposição "Art in Latin America: The Modern Era, 1820-1980" (arte na América Latina: a era moderna), com curadoria de Dawn Ades, em Londres, em 1989, apresentou trabalhos de 155 artistas, sendo apenas 12 mulheres.

As comemorações do aniversário de 500 anos do descobrimento das Américas ocasionaram uma série de mostras que contribuíram para o avanço da tendência de exibir algumas artistas mulheres, como na exposição histórica "Latin American Artists of the Twentieth Century" (artistas latino-americanos do século 20), em Nova York, em 1993, com curadoria de Waldo, que incluiu trabalhos de 95 artistas, dos quais 14 eram mulheres.

"Latin American Women Artists, 1915-1995" (artistas mulheres latino-americanas), nos Estados Unidos, em 1995, com curadoria de Geraldine P. Biller, foi a primeira e a única exposição de grande escala naquele país dedicada ao assunto até "Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985". A mostra tratou das contribuições de artistas mulheres para o desenvolvimento da arte latino-americana do século 20, com uma seleção de 35 artistas, representando 11 países.

Biller deixou o espectador decidir se existia uma estética comum entre as artistas latino-americanas e propôs, por meio de uma série de clichês descritivos, que suas perspectivas eram diferentes das de seus colegas do sexo masculino. Ela se refere à "definição do corpo feminino estabelecida, de maneira tão sensível, por Rocío Maldonado" e pergunta: "Será que um homem escolheria a representação de uma casa para definir seu espaço como fez Elba Damast?".

Tais declarações indicam a lógica por trás da mostra: enfatizar seu papel na revelação de uma natureza única da expressão feminina e sua importância na história da arte. Por um lado, a curadora circunscreve a exposição dentro da concepção anacrônica de arte latino-americana defendida por Marta Traba; por outro, apresenta uma ideia convencional da evolução das tendências artísticas. Além disso, a especificidade de gênero é abordada por meio de noções estereotipadas do feminino.

Apesar das boas intenções, Biller deu ênfase a concepções errôneas e generalizadoras sobre artistas mulheres e não contribuiu de maneira significativa para o avanço do meio ou a sua transformação.

No final dos anos 1990 e no começo do novo milênio, emergiram várias exposições e publicações internacionais e latino-americanas que revelaram práticas variadas e prolíficas de artistas mulheres.

Em seu ensaio "Género y feminismo: perspectivas desde América Latina" (gênero e feminismo: perspectivas da América Latina), de 2008, Andrea Giunta propôs uma abordagem da arte latino-americana de um ponto de vista de gênero.

Em 2007, Karen Cordero Reiman e Inda Sáenz publicaram a primeira compilação de teoria feminista em espanhol, intitulada "Crítica Feminista en la Teoría e Historia del Arte (crítica feminista na teoria e história da arte). Em 2004, na Colômbia, Carmen María Jaramillo foi a curadora de "Otras Miradas" (Outros olhares), uma exposição de trabalhos feitos de 1940 a 2004 por artistas mulheres de diferentes gerações.

Em 2006, Heloisa Buarque de Hollanda e Paulo Herkenhoff fizeram a curadoria de "Manobras Radicais", com o intuito de revelar a audácia e a inovação de artistas brasileiras dos séculos 20 e 21. Em 2007, nos Estados Unidos, Laura E. Pérez publicou "Chicana Art: The Politics of Spiritual and Aesthetic Alterities" (arte chicana: uma política de alteridades espirituais e estéticas).

Várias exposições internacionais incluíram artistas latino-americanas, como a seminal mostra itinerante de Catherine de Zegher, "Inside the Visible: An Elliptical Traverse of 20th Century Art in, of, and from the Feminine" (dentro do visível: uma travessia elíptica pela arte do século 20 sobre, do e a partir do feminino), de 1994; "WACK! Art and the Feminist Revolution" (WACK! arte e a revolução feminista), com curadoria de Connie Butler (2007); "Global Feminisms: New Directions in Contemporary Art (feminismos globais: novas direções em arte contemporânea), com curadoria de Maura Reilly e Linda Nochlin (2007), todas nos EUA.

A exposição internacional "Artevida", com curadoria de Adriano Pedrosa e colaboração de Rodrigo Moura, foi realizada em quatro instituições diferentes no Rio de Janeiro, em 2014, e explorou a relação entre arte e vida, enfatizando o período do final dos anos 1950 até o início dos anos 1980, usando a arte brasileira como referência. Com ênfase especial no corpo —um de seus quatro principais temas—, a mostra reunia trabalhos de um grande número de artistas mulheres.

Talvez essa tenha sido a mais ambiciosa exposição internacional a propor um diálogo aberto e completo entre artistas brasileiros, latino-americanos, europeus e norte-americanos, na qual as artistas mulheres receberam, de forma consistente, um papel de igual proeminência em relação aos artistas homens.

É importante observar que, embora as exposições e publicações discutidas aqui tenham dado visibilidade a artistas desconhecidas, a maior parte delas foi formulada sob o emblema do feminismo internacional, sem esclarecer a diferença entre o quadro estrutural feminista e a arte feminista propriamente dita. Na verdade, a maioria das mulheres apresentadas nessas exposições não considera seus trabalhos feministas.

Da mesma maneira que as artistas latino-americanas, as artistas chicanas e latinas também têm sido excluídas de um diálogo mais amplo na arte moderna e contemporânea. Há muitas razões para isso.

A arte latina e chicana (artistas de origem latino-americano nascidas nos EUA) é frequentemente definida por aquilo que não é: nem americana, nem latino-americana. Essa premissa é baseada não só em concepções errôneas e noções estereotipadas daquilo que a arte latina ou chicana parece ser mas também na aplicação de preconceitos raciais sobre nação e identidade, bem como em entendimentos falsos e limitados em relação à arte nacional.

Dois fenômenos fizeram com que o entendimento da arte latina fosse dificultoso. O primeiro é a ênfase em assuntos sociais (imigração, pobreza, violência, desigualdade etc.) e no ativismo. O movimento chicano, por exemplo, combinou ativismo social com uma ideia de arte e cultura que, além de não ser convencional, é considerada problemática, porque não é glamorosa o suficiente, sendo politizada demais.

O segundo é o multiculturalismo (euro-americano) dos anos 1980, que promoveu um essencialismo cultural, fazendo com que obsessões "identitárias", culturais, nacionais e étnicas se tornassem generalizadas nas interpretações da arte latino-americana e latina.

O multiculturalismo tem sido demonizado de tal forma que é difícil recuperar seus aspectos positivos —como a promoção de um diálogo cultural mais abrangente entre práticas artísticas nas Américas—, assim como analisar seu duradouro legado negativo.

As artistas latinas e chicanas que trabalhavam nos EUA responderam não apenas à política patriarcal, tão opressora nesse caso quanto a enfrentada por suas equivalentes na América Latina, mas também a uma segunda onda de feminismo que era muitas vezes indiferente às questões das "mulheres de cor".

Várias publicações e exposições produzidas na década de 90 foram verdadeiros laboratórios de inclusão e troca. Em 1990, "Mixed Blessings: New Art in a Multicultural America" (bênçãos mistas: nova arte em uma América multicultural), de Lucy Lippard, promoveu um diálogo amplo entre culturas e tratou de um grande número de artistas latino-americanas, chicanas e latinas. No mesmo ano, "Chicano Art: Resistance and Affirmation, 1965-1985" (arte chicana: resistência e afirmação), nos EUA, foi a primeira mostra histórica de arte chicana no país, apresentando trabalhos de 45 mulheres, tais como Álvarez Muñoz, Baca, Yreina D. Cervantez e as Mujeres Muralistas.

Publicado em 1994, o livro "Dimensions of the Americas: Art and Social Change in Latin America and the United States" (dimensões das Américas: arte e mudança social na América Latina e nos Estados Unidos), de Shifra M. Goldman, inclui uma seção intitulada "Mulheres falando", com cinco ensaios que abordam artistas mulheres. No capítulo "Mulheres da Califórnia", a autora destaca o fato de que, apesar da inclusão positiva de artistas latinas e chicanas em exposições, a proporção de mulheres para homens latinos é vergonhosamente pequena.

A partir dos anos 2000, o número de publicações e exposições explorando a identidade foi diminuindo. Uma das mostras mais importantes a reunir artistas latino-americanos e latinos na primeira década do milênio ocorreu em 2008: "Arte Vida: Actions by Artists of the Americas, 1960-2000" (arte vida: ações de artistas das Américas), de Deborah Cullen, em Nova York. Seu catálogo trata do trabalho de mais de 59 artistas mulheres e 21 grupos que incluem mulheres. Essa publicação demonstra quão ampla, experimental e dialógica a cena artística de performance tem sido desde os anos 1960.

Nos últimos anos, a arte conceitual vem chamando a atenção na América Latina. Dois estudiosos e curadores que têm promovido esse campo são Luis Camnitzer e Mari Carmen Ramírez.

Talvez a publicação mais estabelecida e conhecida sobre o assunto seja "Conceptualism in Latin American Art: Didactics of Liberation" (conceitualismo na arte latino-americana: didática da liberação), livro de Camnitzer de 2007. Nele, o autor trata de apenas duas artistas dentro de um âmbito específico: Lygia Clark, com Hélio Oiticica, e Liliana Porter, no New York Graphic Workshop, do qual Camnitzer era membro com José Guillermo Castillo.

Ramírez também mostrou pouco interesse em artistas mulheres dentro de sua ideia de conceitualismo. Seu ensaio "Tactics for thriving on adversity: conceptualism in Latin America, 1960-1980" (táticas para prosperar na adversidade: conceitualismo na América Latina) inclui discussões relevantes sobre o trabalho de Lygia Clark e menciona Graciela Carnevale, Noemí Escandell, Margarita Paksa e Liliana Porter.

O critério usado por esses autores para definir o conceitualismo é heroico, político e até militante, deixando pouco espaço para as formas de conceitualismo e arte experimental que abraçam interjeições mais subjetivas e lutas pessoais e políticas, amplas ou íntimas.

É particularmente relevante a ausência de artistas mulheres como formadoras da arte conceitual e experimental na América Latina entre as décadas de 1960 e 1980, embora deva-se apontar as exceções do Brasil e do Chile e, nos últimos anos, da Argentina, do Peru e, até certo ponto, do México.

Apesar de ainda persistir a disposição para replicar o sistema de exclusão, desde a década de 1970 o meio passou por imensa transformação. Como vimos, isso se reflete na produção de novos estudos, histórias da arte e exposições que reconhecem as mulheres como formadoras originais do campo abrangente da arte moderna e contemporânea.

A própria existência de "Mulheres Radicais" é uma evidência, pois revela como as artistas mulheres ativas entre os anos 1960 e meados dos anos 1980, por meio de explorações de poéticas do corpo arrojadas e criativas e um envolvimento com lutas sociais e políticas, quebraram estruturas patriarcais para transformar a arte de forma radical. 


Cecilia Fajardo-Hill é historiadora de arte e curadora de arte moderna e contemporânea. Doutora em história da arte pela Universidade de Essex, Inglaterra, e mestre em história do século 20 pela Courtauld Institute of Art, Londres.

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