Descrição de chapéu Perspectivas

Na era do celular, fotos perpetuam violência social, diz pesquisador

Autor analisa impacto das atuais formas de produção e compartilhamento de imagens

Fábio D’Almeida

Celular em mãos, ele registra a cena, esperando talvez compartilhá-la em seguida: um homem atônito segura uma arma em punho e grita para todos os lados. De súbito, a arma torna em sua direção e, retribuindo a mira feita pela câmera, dispara algumas vezes. Morte instantânea. 

Visitante utiliza celular para fotografar obra durante a exposição do escultor australiano Ron Mueck, na Pinacoteca do Estado de São Paulo 
Visitante utiliza celular para fotografar obra durante a exposição do escultor australiano Ron Mueck, na Pinacoteca do Estado de São Paulo  - Douglas Cometti/Folhapress

História extraordinária, não fosse um caso real de família (da minha). Morte banal, mas não gratuita, hoje está claro: com intensidades muito distintas, o tiro fatal reagiu, num momento de instabilidade psicológica aguda do homem, ao disparo fotográfico. Dois atos desiguais, se bem que ambos remotos, violentos e injustificáveis. 

Já mais de um estudioso, de fato, disse: toda fotografia é, no fundo, um ato de agressão. Enquanto tal, ela provoca um efeito sobre o fotografado e incita sua reação. No mais  das vezes resume-se a pose, fuga, ou pose que finge não pose; no menos, traduz-se em nova agressão. 

Mesmo se extremo —ou justamente por isso—, o caso trágico evocado faz pensar o quanto modalidades recentes de produção e difusão de imagens, sobretudo digitais, têm facilitado situações para práticas de uma violência social cotidiana não apenas veiculadas pela imagem mas também realizadas através da imagem —isto é, por meio do ato fotográfico/videográfico. 

Não é para menos: enquanto campo de representação simbólico, cuja importância atual é incontornável, também na fotografia digital se apresenta todo um território de opressão e aviltamento. 

Em suas relações de superficialidade, essas imagens, compartilhadas em seguida, mostram-se de início como um meio de troca afetiva e social; efemérides quase sempre inúteis, sobre as quais o brasileiro passa (incríveis) quatro horas por dia, assumindo, segundo recente pesquisa, o ranking mundial na utilização de celular, algo que parece dizer muito sobre a nossa cultura. 

Mas, sob as suas superfícies, essas fotografias e vídeos revelam com frequência seu lado de rebaixamento, sobretudo daqueles em algum tipo permanente ou temporário de vulnerabilidade: o “bêbado”, o “louco”, o “doente”, o “pobre”, o “gay”; ou ainda da mulher, que enfrenta cretinices as mais diversas em fotografia.

Em situações ordinárias, a violência nessas imagens é menos perceptível, pois de algum modo naturalizada e diluída em doses homeopáticas. Basta desnaturalizá-la por um momento, contudo, para ver a sua profusão em redes sociais e o modo como ela se camufla sob o pretexto de um envio inofensivo e divertido. 

Com efeito, essa modalidade de agressão pela imagem é feita para se verter, no fim, em riso ou (mais veladamente) em prazer sádico. 

Mas o que começa como um sadismo doméstico passa logo de aparelho em aparelho, se dessubjetiva e se socializa: torna-se menos culpável, aparentemente. E, no entanto, no seu registro e nos seus compartilhamentos estão atitudes que minimizam, se não desrespeitam, totalmente a condição do outro, sua privacidade ou, ainda, seu direito básico de se difundir enquanto imagem digital quando (e apenas se) quiser. 

Já em 1936, Sérgio Buarque de Holanda dizia, em “Raízes do Brasil”, que a contribuição do país à civilização seria o provimento do “homem cordial”. Via que sua apreciada cordialidade, também ela uma de superfície, tanto quanto seu apego a qualquer tipo de ritualismo social, lhe servia somente de máscara para impor o pessoal sobre o social em todas as suas relações, mesclando as fronteiras dos interesses domésticos e os do público. No horror às distâncias que a civilidade, para prevalecer, impõe às vontades pessoais, estaria o traço mais característico do brasileiro. 

É esse mesmo desrespeito às distâncias, às diferenças, às dificuldades do outro que parece impulsionar os diversos tipos de violência fotográfica produzida e compartilhada a baldes entre nós, algo que parece dar ao homem cordial brasileiro uma imagem que lhe é condigna: uma “fotografia cordial”, cujo acordo entre forma e fundo, justificativas aparentes e objetivos reais de uso são tão incongruentes e superficiais como é ele próprio. 

Como o seu produtor-consumidor, essa imagem cordial não consegue distinguir o que é do “eu” e do outro, apropriando-se da intimidade ou vulnerabilidade dos demais para satisfazer uma necessidade interna de riso perverso, mas que se consome, precisamente, no espaço social. 

A violência através da fotografia doméstica não é certamente um atributo exclusivo brasileiro. O que não quer dizer que práticas de violência que são próprias a cada lugar e tempo não tenham manifestações igualmente próprias na produção e difusão de artefatos simbólicos em cada cultura. A ironia e o eufemismo da violência, na imagem, talvez sejam as nossas.

Não se duvide de que a dificuldade vista por Holanda para o estabelecimento, no país, de uma ética social que não se ancore em um “fundo emotivo” (uma que parece ainda existir, quando se pensa nos recentes: “Por minha família, por meus amigos, eu voto…!) seja a mesma que se terá para estipular uma ética da fotografia doméstica brasileira.

É certo que, na falta de parâmetros específicos que sugiram um modus operandi para essa ética da imagem caseira, o que se deveria fazer é, tão somente, o uso do bom senso. Mas num momento em que ele parece faltar até às esferas as mais essenciais do país, difícil é pensar que seja encontrado entre o afã do disparador digital e a vontade de se obter microssegundos de atenção no dia, pelo “zapzap” ou alhures.


Fábio D’Almeida é doutor e mestre em teoria, crítica e história da arte pela ECA-USP, faz pós-doutorado em história e teoria da arte pela FAU-USP e pela Escola do Louvre

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