Partidos políticos no Brasil ainda são hostis à presença de mulheres

Autora analisa obstáculos para ampliar a representação de mulheres na política

Marina Merlo

[RESUMO] Autora mostra que, apesar de avanços recentes em direção à redução da desigualdade de gênero na política, aumento da representação feminina esbarra no descaso dos partidos e na manutenção de velhas estruturas oligárquicas

 

No início de 2016, o plenário do Senado passou por uma reforma reveladora: pela primeira vez, instalou-se ali um banheiro feminino. Desde a inauguração do prédio em Brasília, em 1960, apenas os homens contavam com essa comodidade; todas as 32 senadoras que estiveram na Casa desde então precisavam utilizar o toalete localizado no restaurante anexo ao plenário. 

O caso é anedótico, mas ilustra o caminho tortuoso que o Brasil tem percorrido para alcançar a igualdade de gêneros na política e no exercício democrático. 

As mulheres conquistaram o direito ao voto no Brasil em 1932, sob inspiração e influência dos movimentos sufragistas da Inglaterra e dos Estados Unidos. Antes disso, mesmo que a lei não proibisse expressamente a presença feminina na política, prevalecia a interpretação de que a Constituição em vigor na época, de 1891, referia-se apenas a homens no seguinte trecho: “são eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei”. 

Argumentava-se que as mulheres eram essenciais para manter a ordem e a harmonia da família e que sua participação nas eleições as deixaria menos presentes no lar e no cuidado dos filhos, uma ausência que levaria ao caos o tecido social

O reconhecimento político veio somente em 1932. Naquele ano, por decreto de Getúlio Vargas, o Brasil teve seu primeiro Código Eleitoral, cujo artigo 2º esclarecia que era eleitor “o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo”. Em 1934, Carlota Pereira de Queiroz foi a primeira deputada federal eleita no país.

De lá para cá, o Brasil sempre tem figurado nas piores colocações quando se considera a proporção de mulheres eleitas, ocupando hoje o 152º lugar entre 192 países em uma lista da União Interparlamentar. A Arábia Saudita está na 100ª posição.

As dificuldades das mulheres no Brasil vão muito além da falta de banheiros. Segundo dados de 2017 do IBGE, enquanto aproximadamente 80,6% dos homens participam dos afazeres domésticos e dedicam cerca de 11 horas de sua semana a essas tarefas, em torno de 94,5% das mulheres fazem jornada dupla, trabalhando o dobro de horas dos homens, em média. Números como esses mostram que ainda sobrevive como prática o que se expressava como argumento nas primeiras décadas do século passado. 

Plenário do Senado em obras para construção de um banheiro feminino, em 2016. Desde a inauguração do prédio do Congresso, em 1960, só existia no local banheiro masculino
Plenário do Senado em obras para construção de um banheiro feminino, em 2016. Desde a inauguração do prédio do Congresso, em 1960, só existia no local banheiro masculino - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Estudos também mostram que, desde muito jovens, as meninas são menos estimuladas a participar de atividades políticas, como grêmios estudantis e juventudes partidárias, e menos incentivadas a considerar a carreira política. 

Enquanto o machismo estrutural ainda permeia as relações sociais, na esfera institucional algumas medidas buscaram, sem muito sucesso, mitigar esses preconceitos e pressionar os partidos a lançar mais candidatas. 

Em 1995, o Brasil teve sua primeira ação afirmativa na política: legendas e coligações deveriam preencher com candidaturas de mulheres pelo menos 20% de suas vagas na disputa pela Câmara Municipal no ano seguinte. Não por coincidência, as agremiações puderam ampliar a quantidade mínima de nomes apresentados —se antes esse número correspondia a 100% das cadeiras (digamos, 55 vereadores), depois da lei ele passou a ser de 120% (66). Dessa forma, ninguém se viu obrigado a abrir mão de postulações masculinas. 

Dois anos depois, a cota mudou para 30% das vagas, mas a redação da norma passou a falar em reserva, e não em preenchimento. Com isso, os partidos se apressaram em dizer que só descumpriam o mandamento legal porque não apareciam mulheres o suficiente querendo se candidatar. 

Em 2009, a lei voltou a dispor sobre preenchimento de vagas e manteve os 30%. Devido à falta de fiscalização, porém, muitos partidos ignoraram a determinação ou cometeram fraudes e saíram ilesos. 
A primeira punição ocorreu somente no ano passado, em Santa Rosa do Viterbo (SP), cidade de pouco mais de 20 mil habitantes na região de Ribeirão Preto: foram cassadas as 22 candidaturas da coligação formada por SD, PMN e Pros, incluindo a de dois vereadores eleitos.

Neste ano, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral tomaram decisões que podem ser vistas como a ação afirmativa de maior potencial de impacto: obrigaram os partidos a destinar a mulheres pelo menos 30% dos recursos públicos que recebem. Pela primeira vez, as legendas não só terão de apresentar 30% de candidaturas femininas como também precisarão distribuir proporcionalmente o tempo de rádio e TV, o fundo partidário e o recém-criado fundo eleitoral. Antes, os percentuais destinados às candidatas era de 10% do horário eleitoral e um máximo de 15% do fundo partidário. 

Inúmeras pesquisas acadêmicas apontam forte associação entre dinheiro e sufrágio. De um lado, mais recursos costumam angariar mais votos. De outro, mais votos em uma eleição costumam garantir mais recursos na disputa seguinte. Esse ciclo perpetua os mesmos nomes —de homens— na política. 

Assim, essas decisões reduzem as possibilidades de esquivas dos partidos para evitar lançar e apoiar mulheres nas eleições. No entanto, na maioria das agremiações, ainda caberá aos líderes resolver como esse dinheiro será distribuído. 

É na partilha do bolo que o lar volta a aparecer. As trajetórias das mulheres que entram na política são preponderantemente familiares: esposos, pais, irmãos e avôs que, ao endossar a candidatura de sua esposa, filha, irmã e neta, emprestam a elas o prestígio de que necessitam. Sabe-se que esse tipo de apadrinhamento também ocorre entre homens, mas sua importância é muito maior para as mulheres. 

Em minha dissertação de mestrado na USP, entrevistei as vereadoras eleitas em São Paulo em 2016 e analisei os dados eleitorais da disputa municipal. Verifiquei que as candidatas apadrinhadas se beneficiam de uma rede de apoio de mandatários e políticos experientes que, sem a bênção familiar, dificilmente estaria à disposição. Uma vez nessa rede, a postulante poderá dispor de recursos materiais e aliados essenciais para ter chances reais de vencer a disputa: convites para subir em palanques e integrar chapas; oportunidades de ter seu nome estampado em santinhos e adesivos ou em faixas de apoio; empréstimo de infraestrutura de campanha, como local para estabelecer um comitê, veículos para viagens e cabos eleitorais para o corpo a corpo. 

Estudo feito por pesquisadores da Universidade de Brasília sobre a trajetória das deputadas e deputados federais eleitos de 2002 a 2010 encontrou resultados semelhantes, indicando que a família é a principal via de acesso das mulheres à Câmara —os homens conseguem entrar na política com recursos próprios. 

Por isso, embora a obrigação de distribuir recursos para mulheres possa causar um aumento no número de eleitas, a medida não necessariamente estimulará os partidos a investir esse dinheiro em candidatas novas. O mais provável é que as legendas favoreçam os mesmos nomes que já são beneficiados hoje ou deem preferência por alavancar suas candidatas a vice-presidente, deixando às novatas as dificuldades já mencionadas. 

Ainda assim, as recentes decisões da Justiça dão força à sociedade civil e à academia para fiscalizar as ações dos partidos no que diz respeito à desigualdade de gênero

Mesmo que conquistada a cidadania formal, nós, mulheres, ainda estamos no processo de assegurar sua prática. Ao longo desses anos, elites e partidos políticos têm resistido a se abrir para a participação de figuras alheias ao seu mundo. A necessidade reiterada de criar regras para obrigar as legendas a se democratizarem mostra que ainda há muito a fazer a fim de assegurar a nossa própria democracia.


Marina Merlo é mestra em ciência política pela USP e cofundadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política do Departamento de Ciência Política, é analista de dados da Folha.

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