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Avanço da tradução por máquinas gera debate sobre papel de humanos na tarefa

Relatório apontou que 99% das traduções são feitas atualmente com auxílio de computador

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Num momento em que a presença da inteligência artificial na vida cotidiana frequentemente gera medo e paranoia na mesma proporção em que fascina, pode ser mesmo assustador descobrir que 99% de todas as traduções são, atualmente, feitas com o auxílio de máquinas.

A informação consta do mais recente relatório de uma organização (www.taus.net) dedicada a fazer avançar o uso do computador nessa atividade que, particularmente em sua vertente literária, reivindica para si o status de arte —ou, no mínimo, de processo criativo.

"A cada dia do ano de 2016, mais de 250 bilhões de palavras foram traduzidas por máquinas", contabiliza o estudo. É um cenário devastador para os tradutores profissionais. E, de fato, muitos foram sendo dispensados pela automação ao longo das últimas décadas. Exceto por um punhado de privilegiados (entre eles, o autor destas linhas, é bom dizer logo), pois do que ainda não se tem notícia é que algum romance, conto ou poema tenha sido traduzido inteira e, sobretudo, satisfatoriamente por algoritmos.

mulheres com livro e máquinas
Tradutoras em cabine de escola de idiomas  - Rafael Roncato/Folhapress

Uma primeira e boa razão para isso é que até a menos sofisticada das recriações de uma língua a outra não se faz palavra por palavra, e é curioso que o tal relatório do fim do mundo da tradução como um dia a conhecemos venha nos contar hiperbolicamente as vantagens do computador exatamente com base nessa falsa medida de eficiência.

O espantoso avanço das máquinas sobre o engenho humano nessa área só começou, ao contrário, quando seus desenvolvedores perceberam que a linguagem humana transcende o nível lexical; ela é sempre "texto" —no sentido de uma interação verbal, mesmo que falada, com fim específico— e, principalmente, contexto.

A virada aconteceu quando a tradução automática entrou numa segunda fase: a partir dos anos 1980, as máquinas passaram a ser alimentadas não com os sistemas estáticos (dicionário mais regras gramaticais, basicamente) de duas ou mais línguas, mas com textos reais —escritos por humanos, como é óbvio— nos diferentes idiomas em que estivessem disponíveis.

A internet, um imenso banco de traduções (basta pensar no volume de documentos ou notícias que circulam diariamente em mais de uma língua, na ONU ou na BBC), se provou um manancial de acesso imediato.

A partir daí, métodos estatísticos sofisticados e as chamadas redes neurais de processamento desses textos procedem, hoje com notável precisão e capacidade de autocorreção, à varredura de equivalências de significado e ao "casamento" entre frases ou pedaços delas.

O que permitiu à pesquisadora italiana Marzia Grillo um experimento radical: ela publicou, em 2016, uma antologia de poemas da americana Emily Dickinson vertidos ao italiano por tradutores automáticos de uso gratuito.

Como editora dessa pioneira coletânea, Grillo privilegiou resultados que realçassem aspectos como sonoridade, imagens pitorescas ou cômicas e ambiguidades de sentido —alguns poemas em que aparecia a palavra "gay", por exemplo, renderam versos engajados "avant la lettre", uma vez que os originais de Dickinson datam do século 19.

"Temos aí traduções poéticas, sem dúvida", defendeu ela, "e não só porque criam um sistema (mesmo que inadvertidamente) de rimas, assonâncias e soluções 'felizes' em termos musicais e rítmicos, mas também pelas imagens que, ainda que infiéis [ao original], são, para todos os efeitos, poderosas."

Grillo, porém, deixa sem resposta uma questão fundamental: quem assina essas traduções? Quem seria o autor dos poemas em italiano, nesse caso —e, antes, faz sentido falar nesses termos sobre textos traduzidos?

A tradução, particularmente a tradução literária, é um trabalho criativo, claro, mas daí à reivindicação de autoria sobre o novo texto resultante da transposição de uma língua a outra vai uma distância. (Não à toa são raros os casos —no Brasil, quase inexistentes— de tradutores remunerados por direitos autorais.)

Ainda assim, sem abandonar as normas de consenso sobre o que constitui uma tradução em termos modernos (e uma boa tradução, em particular), um tantinho de diversão autoral sempre nos será permitida, como lembrou o principal tradutor do alemão para o inglês em atividade, o também poeta Michael Hofmann:

"Eu meio que reluto em afirmar isso, mas essas questões [sobre autoria] também me dizem respeito. Ao menos num sentido técnico dizem respeito a mim, pois, não importa o quanto o tradutor idealmente se faça invisível, as palavras ali são dele, de qualquer maneira, [então] por que não dar minha contribuição com uns palavrões interessantes?"

Coisa que máquina alguma jamais será capaz de fazer com o mesmo engenho. 


Christian Schwartz, doutor em história social (USP/Cambridge), é jornalista e tradutor.

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