Descrição de chapéu Memorabilia

Fellini era mestre em capturar a alma humana, afirma Irene Ravache

Atriz fala sobre sua relação com 'Amarcord', que considera um divisor de águas no cinema

Irene Ravache

Assisti a “Amarcord” no cinema, no ano de sua estreia, 1973. Estava com meu marido e uma turma. Ao fim da sessão, todos ficamos conversando até de madrugada, percebendo que cada um ali tinha visto um filme, foi apanhado por uma cena diferente.

Tínhamos todos a convicção de que víramos um divisor de águas na arte cinematográfica. Não havia nada parecido antes, então não tínhamos bem palavras para expressar.

É um dos filmes mais ousados que um cineasta já apresentou. Já pela introdução: uma tela preta com caracteres brancos, a princípio sugerindo uma obra dura, não fosse a trilha magnífica de Nino Rota, casamento perfeito entre diretor e compositor. 

A palavra “Amarcord” aparece ao fim dos créditos, com uma tipologia diferente. É uma expressão que causa estranhamento. Depois o cineasta declarou que o título não significa “eu me recordo”, como se especulava, que era só uma palavra de cujo som ele gostava.

Uma vez meu marido me disse que Fellini é como o pai do Bambi: tem uma grande galhada na cabeça. Tem ali a fantasia, o lúdico, a contravenção. É uma cabeça ornada. 

Sua maestria em tocar na alma humana é resultado não só de seu incomensurável talento, mas do grande observador que era. Ele tinha olho de desenhista; no entanto existem exímios artistas e fotógrafos que farão bem seu retrato, mas não vão capturar sua alma. Fellini consegue.

“Amarcord” é uma colcha de retalhos, um inventário de emoções. Tolstói tinha uma frase célebre: “Conte de sua aldeia e estará falando do mundo”. Quando Fellini fala de Rimini, fala de todas as pequenas cidades italianas; de todas cidades europeias; e do teu vizinho. 

Conheço aqueles meninos, aqueles professores. Se me perguntarem se já tive um professor que fazia aquele movimento com a brasa do cigarro, como o do filme: não, mas tive um que fazia algo muito parecido. 

poster de fundo amarelo
Pôster do filme "Amarcord", de Federico Fellini - Divulgação

Talvez Fellini seja nosso diretor mais lúdico. Coloca a sua principal figura feminina, Gradisca, de vermelho o tempo todo, e de boina. Não sei se porque é francesa ou porque é perturbadora. Em uma cena, viajamos ao passado dela e, no flashback, a mulher continua com o mesmo vestido. Tem um encontro com um príncipe que é quase um soldadinho de chumbo; quando ela tira a roupa e se deita com ele, está de combinação preta —e boina. 

Uma das passagens mais bonitas de “Amarcord” é a chegada do transatlântico Il Rex. Um nome quase regal. O diretor constrói no estúdio um mar de mentira, névoa falsa. O espectador sente uma nota de estranheza no ar, mas se deixa capturar por aquela que considero uma das imagens mais bonitas que um cineasta já entregou. 

A cidade inteira vai até o navio como uma cerimônia: ele representa a chegada da América, do sonho inatingível àquela terra. A promessa da liberdade e da abundância, algo esmagador para quem está sentado ali no seu humilde barquinho. Choro todas as vezes nessa cena. 

Em outro momento, um nevoeiro cai e, logo depois, o avô da família sai de casa. Ele se perde a cinco passos da porta. O início da senilidade, afinal, é como uma névoa. E ao se desorientar ele diz: “mas será que isso é morrer? Então, não vale a pena”. Ele deseja que a morte seja alguma coisa além. E fica muito agradecido quando vem um carro e o motorista aponta a casa ali perto.

Em seguida, o neto mais novo sai e também tem medo do nevoeiro. Não pela mesma razão, mas porque a bruma faz com que o garoto veja figuras fantasmagóricas. O diretor une nesse nevoeiro o início e o fim da vida: tenho a névoa que me amedronta porque estou começando num mundo cheio de surpresas; e a névoa que simboliza que estou perdido dentro de mim mesmo.

Há também uma cena divertida num grande e rico hotel, onde se hospeda um sheik com suas concubinas vestidas de burcas, que todas as noites jogam um lençol da janela para que suba o vendedor de castanhas —o mais pobre e feio da aldeia. 

Em outro momento, Fellini cria um labirinto na neve. Os meninos da cidade notam um pavão voando no céu, e Gradisca aparece de branco —não mais de vermelho—, porque chegou alguém com mais majestade que ela: o pássaro.

Também há Volpina, a doidinha da cidade, que inspirou todas as que vieram depois no cinema e na televisão. Há o pai que volta coberto de merda depois de um encontro com os fascistas. E o tio louco que sai gritando “voglio una donna” (quero uma mulher) em cima de uma árvore, na cena mais emblemática do filme.

Enquanto conta uma história que enternece por todos os poros de emoção, Fellini brinca conosco o tempo todo. Com Buñuel, por exemplo, o jogo era mais intelectual, enquanto o italiano era mais bonachão, um comilão, apreciador de beleza. Não se levava a sério. É como se a todo momento dissesse: “Não confie muito em mim. Isso é só uma brincadeira de luz”. 


Irene Ravache, atriz e diretora, acaba de estrear na novela ‘Espelho da Vida’, da TV Globo.

Depoimento a Walter Porto

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.