Descrição de chapéu Memorabilia

Maestro romeno me ensinou importância da radicalidade, escreve Bia Lessa

Diretora lembra Sergiu Celibidache, cuja regência 'inventava o tempo' a partir de música já criada

Bia Lessa

Nunca mais fui a mesma. Um assombro. O programa no ano de 1993 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro incluía "Quadros de uma Exposição", de Mussorgsky, mas a regência foi que me transpassou.

O que era aquilo? Como era possível? Os silêncios prolongados ao extremo, as notas sendo reveladas todas. Do silêncio ao som, uma longa estrada. A delicadeza de cada movimento. A inauguração de um novo tempo. A imposição à plateia de um silêncio nunca visto.

Não se podia respirar. Suspensão. Naquele momento, a vida se congelava, nada mais existia a não ser uma nova realidade que se revelava a nossa frente.

Assim é a obra do romeno Sergiu Celibidache (1912-1996), que foi maestro das filarmônicas de Berlim e Munique. Todas as suas regências se transformavam numa peça única, uma transcrição, como diz Haroldo de Campos. Ele reinventava o sentido do ouvir, o tempo, as texturas, as potências.

celibidache regendo músicos
O maestro Sergiu Celibidache durante ensaio da Orquestra Nacional da França, nos anos 1970 - Georges Galmiche/Ina/AFP

Notas quase escondidas se revelavam. O mesmo Beethoven, mas um outro Beethoven. Como era possível outra coisa em cima da mesma? A liberdade, a inventividade do grande maestro diante de uma extraordinária composição. Como quem diz: sobre ela ou sob ela há outra —sua coragem de inventar o tempo a partir de um grande compositor. Como se desconstruísse e reconstruísse uma nova edificação a partir de algo genial.

Essa é uma lição que não me escapa. A importância de colocarmos nossa individualidade de forma radical em tudo que fazemos. Estabelecer um diálogo com o que já existe, criando pontos de fricção, encontros, desencontros. Seja qual for a obra, qual for o autor, a humanidade se estabelece quando o diálogo franco existe.

Em arte, não pode haver patrões, nada é mais importante que nada. São peças de uma trama que se constrói e se reconstrói. Um tecido único ao longo dos séculos desde a invenção da linguagem.

No fim do concerto de Celibidache no Theatro Municipal do Rio, encontrei o ator José Lewgoy encostado numa parede, eu aos prantos. Um único comentário: "Estou exausto! Não consigo respirar!".

Não aguentei, corri para o bastidor, a fim de poder agradecer. Quando cheguei ao corredor que liga o palco aos camarins, encontrei o maestro de costas, indo embora, apoiado numa figura masculina, quase sem conseguir andar. Absolutamente frágil.

Não consegui chamá-lo, fiquei imóvel vendo aquele gênio sumir lentamente, como se de fato estivesse se despedindo da vida. Solitário, como todos nós, depois do dever cumprido, indo a caminho do fim. Celibidache morreu três anos depois.

O maestro tinha o domínio do tempo, algo tão raro. Uma composição que normalmente é executada em 20 minutos, com ele, demorava 30 ou 40. Tudo se ouvia, a composição era revelada em todas suas nuances e intenções —ou se ouvia uma outra composição a partir da mesma?

Recomendo também ver no YouTube os ensaios e entrevistas de Celibidache. Para ele, a música só acontecia dentro da sala de concerto, ao vivo, com a acústica do dia, a respiração da plateia, os músicos e o maestro. Um concerto não podia ser repetido jamais, sempre é outro, porque nunca somos os mesmos. Gravá-los é congelá-los, matá-los —uma tentativa de enjaular a alma.

Essa é a grande dádiva dos acontecimentos ao vivo: sempre é possível melhorá-los, transformá-los, refazê-los, às vezes mudando uma única nota, uma única fala, um gesto ou uma ordem inteira. Tão parecido com a vida, que nos imprime questões diárias exigindo respostas próprias, e se apresenta com essa graça, essa potência, essa mágica.

Como é possível haver tantas combinações? Bilhões de indivíduos, uns diferentes dos outros, criações inusitadas da diversidade infinita das combinações físicas. Temos que contribuir com nossa diferença, nossa particularidade. Somos parceiros de tudo que existe. E cada pessoa é uma experiência única.

Entendi, a partir da obra de Celibidache, que nossa contribuição deve ser sempre radical, temos que ser nós mesmos até o limite. Quando isso acontece, percebemos a imensa diferença entre o que nos parecia idêntico, se olhamos de relance, e o que é de fato se olharmos com lente de aumento —quando a liberdade acontece são os abismos benignos. O mundo visto pela primeira vez. Uma revelação. Um milagre (isso deve ser o milagre!).

Assim foi quando assisti à regência do maestro Celibidache.

Tive o entendimento do que somos enquanto humanidade. Somos a partir dos outros; um fio que liga o futuro e o passado. Uma corrente transmissora. A busca de criar o já criado, dando sentido à ideia do humano.

É como disse Hannah Arendt: sabemos que vamos morrer, mas sabemos que não nascemos para morrer, nascemos para continuar. 


Bia Lessa, atriz e diretora de teatro, montou neste ano as peças "Grande Sertão: Veredas", pela qual venceu o prêmio Shell, e "Pi - Panorâmica Insana".

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.