Perda no Museu Nacional é como esquecer dez anos de vida, diz historiador

Salvatore Settis, italiano que lidera conselho científico do Louvre, faz palestra em SP nesta quarta

Francesca Angiolillo

“Quem de nós estaria disposto a perder a memória de seus primeiros dez anos de vida?”, pergunta Salvatore Settis. “Quem estaria disposto a não ter uma infância, pais, uma casa, algo a recordar pelo resto da vida?”

É com essa indagação que o arqueólogo e historiador da arte italiano tenta resumir o que significa a perda de um acervo como o do Museu Nacional, consumido em sua quase totalidade no último dia 2.

“Não podemos viver num eterno presente, sem passado. A construção da memória histórica é um ingrediente essencial da vida política, da consciência coletiva, da democracia. Nesse sentido, o que aconteceu no Museu Nacional do Rio é uma perda para o mundo todo.”

Settis, faz nesta quarta (26), às 17h, uma conferência na FAU-USP, em São Paulo, convidado pelo Istituto Italiano di Cultura. Ele teve seu nome popularizado ao assumir uma batalha contra o governo de Silvio Berlusconi, que tentava aprovar uma lei que permitiria vender todo o patrimônio público a fim de fazer caixa para o Estado.

Se a palavra de Settis pesou, junto à de outros nomes, para impedir a aprovação da lei, isso se deve ao prestígio que o professor angariou a partir de seu exercício profissional.

Autor de vários livros em que fundem arqueologia e história e ex-diretor da prestigiosa Escola Normal Superior de Pisa, Settis atuou também como diretor de um dos institutos da Fundação Getty e hoje está à frente do conselho científico do Museu do Louvre, em Paris.

Sua atuação, portanto, se dá entre a pesquisa acadêmica e a preservação, tanto no âmbito público como no privado. É uma posição que lhe permite um privilegiado ângulo de observação da questão do patrimônio e asseverar que ela é tão crucial que quem paga a conta se torna menos importante.

No entanto, classifica a privatização como “um caminho muito perigoso". Embora veja com bons olhos o modelo de mecenato americano (contudo de difícil exportação, diz), frisa que é importante que o acesso ao patrimônio seja público.

“Se alguém da iniciativa privada quer se encarregar do patrimônio cultural, muito bem. Mas se quer fazer isso para ganhar, não. O patrimônio cultural, sendo propriedade coletiva, não deve se tornar ocasião de lucro para alguém.”

Se em seus princípios um museu era somente uma coleção, isso mudou. O Icom (Conselho Internacional de Museus) tem entre suas discussões a definição, em constante evolução, do que uma instituição deve fazer para merecer esse nome.

No ano que vem, na nova convenção geral do conselho, em Kyoto, uma nova definição será estabelecida. Por ora, vige a de 2007, estabelecida em uma convenção do conselho em Viena: “Museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e aberto ao público, que adquire, conserva, estuda, expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio, com fins de estudo, educação e deleite”.

O Museu Nacional​, diz Settis, era “muito famoso por sua variedade”. Mas, ele ressalta que, além de guardar aquele imenso acervo, com meteoritos, múmias e dinossauros, era ilustrativo de um aspecto que não estava exposto em suas prateleiras e que talvez tenhamos naturalizado: a forma como o Brasil se tornou um país independente.

“A descolonização do Brasil é única. Foi um processo durante o qual as coleções de um imperador se tornaram as coleções de uma República. Pensar que de tudo isso não sobrou mais nada é assustador.”

Settis também defende a atuação dos museus universitários, mas diz mais. 

“O fato de que fosse um museu assim importante fazia dele automaticamente um centro de pesquisa. O Metropolitan Museum ou o Museu Britânico não são de universidades, mas são grandes centros de pesquisa, como é o Louvre, onde centenas de arqueólogos, historiadores da arte fazem pesquisa todos os dias. Assim deve ser.”

Também na Itália e na Europa, ressalta, enfrentam-se problemas semelhantes aos nossos nas instituições.

“O que às vezes acontece, também na Europa, é que às vezes para um museu mesmo importante, há uma espécie de jogo de empurra de responsabilidades. O Estado passa para a universidade, ou a uma região, a uma cidade, depois não se sabe o que deve fazer o Estado, a universidade, a cidade, quem tem de ter recursos. Isso é o que se deve evitar. No momento em que se estabelece um princípio, deve-se estabelecer também que deve haver recursos.”

Mas na Itália não acontece, diz, de uma instituição manter as portas abertas se os sistemas de segurança não estiverem atualizados. “Às vezes chove” dentro de um edifício histórico, afirma, “e é preciso fazer reparos”.

No entanto há, por exemplo, a mesma pressão das aposentadorias de servidores públicos sobre a definição dos quadros ativos.

“Um problema dos nossos museus na Itália é a redução do número de pessoal, o que faz com que, às vezes, não se possa abrir todo um museu e se tenha que fechar salas. No ano passado foram contratadas 1.100 novas pessoas e o novo primeiro-ministro anunciou que deve abrir 7.000 novos postos.”

O último concurso para contratação de pessoal do Ibram —transformado por decreto em agência, a Abram, no apagar das chamas do Museu Nacional— foi em 2010.

“É um problema de toda a gestão pública, da polícia, do Exército, dos hospitais. Nós precisamos de médicos, ninguém pode pensar que, se a gente não pagar a aposentadoria, não podemos mais cuidar da nossa saúde. Cuidar do patrimônio é cuidar da saúde da comunidade. É preciso achar uma solução. Se não podemos pagar a aposentadoria dos professores, devemos permanecer analfabetos?”.

Settis não se limita a entender como patrimônio cultural os edifícios e o que eles contêm. Assina, sim, livros sobre a antiguidade clássica, caso de “I Greci” (os gregos) para o qual coordenou uma equipe que tenta dar conta, em numerosos ensaios, daquela cultura em seus mais variados aspectos a partir de estudos de sua história e vestígios.

Mas destacam-se em sua produção obras como “Architettura e Democrazia” (arquitetura e democracia), de 2017, em que fala da responsabilidade do arquiteto diante das cidades em cuja paisagem interfere. Este será o tema de sua fala na FAU, em que abordará o futuro das cidades e a ética do arquiteto.

Para ele, arquitetos deveriam se orientar por um juramento, como o de Hipócrates, que fazem os médicos, e terem consciência de que não podem prejudicar a cidade em que operam, construindo arranha-céus em centros históricos, por exemplo.

Settis traz à luz o caso do edifício que Renzo Piano ergueu em Turim. Naquela cidade do norte da Itália, há uma regra que diz que nenhuma construção deve ultrapassar a altura da Mole Antonelliana, um edifício originalmente concebido para ser uma sinagoga, que depois funcionou como mirante e hoje abriga um museu do cinema italiano. Com sua cúpula que atinge 85 metros, o prédio marca o skyline turinês.

renzo piano
O arquiteto Renzo Piano - Dylan Martinez/Reuters

A Mole, diz Settis, nem é um edifício tão antigo, “é do século 19, mas muito precioso”. “Infelizmente, Renzo Piano, que é um grandíssimo arquiteto, acaba de fazer um arranha-céu que tem um metro a menos. Ser um metro mais baixo não significa nada. Esse arranha-céu [Intesa San Paolo] deturpou o skyline de Turim. Isso foi muito discutido e, para mim, foi um grave erro.”

“A proteção dos edifícios isolados não tem nenhum significado, sem a proteção do contexto. O tecido da cidade confere valor ao edifício, e o edifício, ao tecido da cidade”, afirma.

Settis, contudo, não é avesso ao reaproveitamento de edifícios históricos para fins considerados mundanos —reservá-los apenas para usos culturais seria utópico, impossível mesmo diante das demandas. O que deve haver, defende, é uma “gramática do reúso”.

Um caso muito interessante, recorda, é o do Fondaco dei Tedeschi, em Veneza. O prédio foi construído em 1505, perto da ponte do Rialto, como uma espécie de hospedaria para os mercadores alemães que iam fazer negócios na cidade dos doges.

A Benetton o comprou com o intuito de ali instalar uma espécie de shopping de luxo, o que causou grita entre os conservadores do patrimônio. “Eu fui a favor da transformação, porque ele nasceu como um edifício comercial”, diz.

Só não foi favorável, diz, a agregar um piso à construção e a instalar escadas rolantes vermelhas no pátio do palácio do século 16, como queria o escritório OMA, do holandês Rem Koolhaas, estrela da arquitetura contemporânea. “Isso não dá.”

Para entender o valor do patrimônio e sua intrínseca relação com a cultura e com a identidade de uma sociedade, não há outro caminho, afirma Settis, além do estudo da arte ao longo de toda a trajetória escolar de um indivíduo comum —e não somente para o arquiteto, o arqueólogo, o historiador.

“Se não existe uma consciência disseminada, não se pode supor que o cidadão reaja da maneira correta a esses problemas. Quando existe essa consciência, ela fomenta mais criatividade e o desejo de proteção do patrimônio. Esses são problemas hoje universais, porque são próprios de um capitalismo duro como o de hoje.”

O mercado, afirma, é uma ameaça constante. “O capitalismo de hoje tende a dizer que tudo tem seu preço. Há valores que não têm preço. Um é a vida humana. Outro é a memória cultural. Se não conseguirmos parar isso, não poderemos nunca lutar contra o desafio desse capitalismo dos mercados, que domina o mundo.”


Francesca Angiolillo é repórter da Folha e mestranda em arquitetura e urbanismo na FAU-USP.

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