Premiado escritor Gonçalo Tavares fala sobre abutre em texto inédito; leia

Autor escreveu inspirado em vídeo de artista português que mostra animal dentro de biblioteca

Gonçalo M. Tavares

[SOBRE O TEXTO] O autor nascido em Angola, vencedor dos prêmios José Saramago e Portugal Telecom (atual Oceanos), escreveu o texto nesta página especialmente para a Ilustríssima, inspirado pelo vídeo “Untitled (Vulture in the Studio)”, de 2002, do artista português João Onofre.

abutre voa em meio a escritório
Reprodução do vídeo "Untitled (Vulture in the Studio)" (2002), de João Onofre - João Onofre

1. biblioteca

“Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira.” 
                Clarice Lispector


Nada é mais ruidoso numa biblioteca que o animal. Como um espaço acabado, a biblioteca vazia é sacudida emocionalmente como se fosse uma coisa de passagem, ou um espaço que passa, portador de uma velocidade média. Uma biblioteca tem a velocidade que os seres vivos dentro dela exibem. De resto, fica: espera. Como um lugar parado.


2. abutre

“coincidência da comida, da digestão, do que não controla, as emoções dos intestinos,” 
                Alberto Velho Nogueira


O abutre não é um animal que misture. Não há dois impulsos quando se vê este animal em pleno movimento, nas pernas ou nos olhos: animal concentrado, bicho solene, fórmula exacta de um dos medos humanos. 

Atentemos na frase de Musil em “O homem sem qualidades”: “Tenho boa memória porque não sei o que fazer às coisas”. Eis que ela nos dá uma pista. De facto, o abutre perdido na floresta humana do estúdio de um artista não sabe o que fazer às coisas que o rodeiam. O seu bico-boca não tem alimento, e até a curiosidade visível em certos movimentos breves do pescoço parece ser mais uma impossibilidade de estar parado. Não se tratará de um quero ver, mas sim de um: não quero parar

O estilo grosso do abutre cultiva a espera. E saboreia-a. 

E há ainda a sensação espantosa de retrocesso, vamos para trás do presente, como se o animal estivesse ali antes dos livros. Ocorre-nos a frase: o abutre, aquele abutre, é mais velho que um livro do século XVI. E esta é uma frase possível.

Se o abutre não sabe o que fazer às coisas do estúdio, é porque aquelas coisas não são as suas coisas. O que é passo na floresta para o humano (Junger) é passo no estúdio do artista para o abutre.

E há uma inquietação forte quando se vê o abutre bicar, morder nos livros, que se supõe repletos de imagens coloridas de pinturas e obras de arte (do Ocidente, do Oriente). O abutre representa uma memória fechada, uma memória que já não avança, que já não pode avançar. Impossível trabalhar o passado, ele — o abutre — não sabe o que fazer às coisas: os dias acabaram.


3. medo

“A vida não passa de uma variedade da morte, e uma variedade muito rara.”
                Nietzsche 


Ir até às “verdades que dão que pensar” (Deleuze) demora tempo. Não é fácil nem rápido colocar um abutre dentro do estúdio de um artista. Certo modo de tornar os pressentimentos belos, sem que se tornem entediantes, demora séculos a surgir, e não os minutos que parece levar o despejo sólido e simples de um animal no espaço. A mitologia lúcida de um abutre com a fisiologia regular pousada sobre os nossos livros, traz ao mundo uma impressão de acção que se completa. O que fica por fazer? O essencial, ou nada.

O que ficará talvez por fazer é um certo medo novo — porque os medos também se fazem individualmente como qualquer outra obra das mãos ou daquilo a que vulgarmente se chama inteligência — um medo original, portanto: vindo da origem, do Antigo, mas que se nos apresente, ao fim do dia, como uma surpresa. 

Antes de ver este vídeo desconhecia ter este medo. A invenção de novos medos, que poderá ser prejudicial às crianças, só pode ser benéfico para os adultos que, num determinado momento, se julgam já preparados para decidir. Decidir sobre o possível é optar entre diferentes medos, e quantos mais, de entre estes, conhecemos, mais livres somos. Se não conheces os teus medos de que obras te poderás orgulhar?

Porque o essencial de uma biografia não vem, como há muito se sabe, nas datas explícitas, mas sim nessas datas invisíveis onde um novo temor é ultrapassado por uma nova construção. A solidão irremediável torna-se temporariamente suportável apenas porque se fez.

abutre rosa e azul
Ilustração para Imaginação - DW Ribatski


4. imortalidade

“Talvez julgasse que a altura cobre a nudez.”
                Giánnis Ritsos


Como um desastre ocorrido na claridade, o abutre, masculino no nome e masculino na maldade, não é, por imposição do género, a “irmã louca da minha frase” de que René Char falava, mas sim o irmão louco dos meus livros, alguém que entrou no  estúdio do artista para mostrar, ao mesmo tempo, a insignificância da esperança e da biblioteca; os dois tempos exclusivamente humanos — o passado e o futuro — são anulados fisicamente por esse porta-voz da dissolução que é esse estranho animal que gosta de alimentos mortos, como se estes existissem.

De resto (o resto, mesmo), como voltar a trabalhar no sítio onde o abutre esteve? 

A resposta é: como sempre se fez depois dos mais próximos nos morreram: com um esquecimento exacto, certeiro. Só pode fazer algo quem esqueceu bem, quem foi eficaz a esquecer. Tu fazes com as coisas aquilo que o teu esquecimento permite, como dizia o reverso da frase de Musil. O abutre no meio da mercearia humana dos livros tem assim que ser esquecido. Se queres voltar a ler e acreditar nos livros terás de construir algo sobre este novo medo que o artista teve a gentileza rude de inventar.

E este fazer, que os homens a si mesmo exigem, tem por base o esquecimento de certas perguntas. Como ter coragem para nos deixarmos morrer, depois da visão de um abutre? Eis uma pergunta que, até que a eliminemos da memória, não nos permitirá avançar um único passo, não dentro da floresta, mas dentro da nossa própria casa, entre os móveis que o dinheiro compra.

Depois de adquirido este novo medo orgânico (orgânica é a substância capaz de crescer), o que parecia impossível parece agora fácil. Como não ser imortal depois de ver um abutre no estúdio do artista? Ou, reformulando a interrogação, tornando-a afirmativa para melhor resistir às suas irmãs dos livros, dizer assim porque assim nos diz o instinto: depois desse medo do abutre só um ser vivo desastrado não conseguirá ser imortal.


5. livro

“Da margem do livro me aproximei eu uma tarde.”
                Vicente Huidobro


Em todos os movimentos do abutre no estúdio há a sensação de falhanço. O animal falha. O seu bico-boca tenta pegar num livro, não consegue: os livros não são comestíveis. Deita, é certo, algumas folhas fixadas na parede ao chão, mas não há um projecto. O animal mau não tem estratégia, parece ter perdido a sua grande habilidade: a aptidão para esperar; para saber de que lado esperar. Rodeado de livros e catálogos (do Ocidente, do Oriente) o animal não sabe qual o lado do estúdio mais próximo de algo que se aproxime da substância de um alimento. Desprovido de pressentimentos qualquer animal se torna desajeitado, sem a inteligência — que impede a suspeita de que ele — o bicho — estará a pensar, e sem a agilidade animalesca, o abutre fica com a parte menos orgulhosa do ser humano: a fragilidade. No meio dos livros, um olhar distraído e rápido poderá confundir o abutre com uma galinhola. O animal falha.


6. derrota

“O pouco que conheço da lei de Newton/ incorpora-se num pátio (...)”
                Santiago Silvester


Mas é evidente que os animais não falham como falham os livros ou outras coisas imóveis. No estúdio o abutre é um animal que não consegue, porém sobra, daquela sucessão de fracassos, uma intensidade orgânica que coloca o espectador em respeito. Experimente-se colocar um livro num pequeno compartimento, atrás de uma porta fechada à chave, e um bicho no mesmo compartimento. As duas coisas — o bicho e o livro — serão vencidas pela porta, mas no bicho — que poderá ser o mesmo abutre — há uma invulgar intensidade na derrota; só os animais e os homens perdem assim.

Claro que vencer é tão inequívoco que se torna uma unidade, não há interpretação. Só ser derrotado possibilita o discurso que quer entender. Daí que este animal proprietário de grande parte da maldade se torne — quando dentro do estúdio do artista — como um livro que se pode interpretar porque está perdido e falha, ou melhor: porque está perdido falha. Uma biblioteca poderá matar de medo um abutre? Sim, é a resposta. 


Gonçalo M. Tavares, poeta e romancista angolano radicado em Portugal, é autor de “Jerusalém” e “Aprender a Rezar na Era da Técnica”.

DW Ribatski é artista plástico, ilustrador e quadrinista.

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