'Se havia uma coisa esquisita ali, era a minha vida'; leia trecho de 'Sebastopol'

Novo livro de Emilio Fraia entrelaça histórias distintas repletas de relações sutis

Emilio Fraia

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte de "Sebastopol", terceiro livro do autor, que entrelaça três histórias distintas repletas de relações sutis. A obra sai pela Alfaguara em outubro.

 

quadro em cinza e vermelho sobre jornais
Obra sem título (1983) de Antonio Dias - Divulgação

Uma manhã, enquanto comíamos, eu disse a Klaus que não entendia muito bem a razão de ele estar escrevendo um texto sobre aquele personagem. Você gosta das pinturas desse cara, eu disse, algo nelas te emociona, ok, mas é apenas uma história esquisita em que não acontece nada.

Pela rua passavam carros sem parar. Klaus limpou com um guardanapo o bigode sujo de leite e falou que todas as histórias no fundo eram histórias esquisitas em que não acontece nada. Nós somos o passado, ele disse. Eu falei que não, nós somos o futuro. Ele riu daquilo. Pedi para ele me explicar a graça. Ele disse que não, não me explicaria coisa nenhuma. Além disso, não era verdade que naquela história não acontecia nada. Ele estava exatamente naquele momento trabalhando num episódio de muito movimento.

Um episódio de muito movimento, repeti.

Sim, ele falou, um episódio de muito movimento. Um episódio de muito movimento na vida de Bogdan Trúnov.

Klaus e eu tínhamos bebido na noite anterior e tentávamos não morrer. Minha cabeça ia explodir. Era uma manhã fria e sonolenta. Estávamos numa parte protegida do bar, onde a corrente de ar não nos alcançava. Ele usava um cachecol com uns alces marrons, que combinavam com a cor do seu bigode. Eu comia meu pão, olhava para Klaus e pensava que se havia uma coisa esquisita ali, essa coisa era a minha vida.

Meus pais moravam no interior e quando me ligavam eu dizia que as coisas iam bem, o emprego, a faculdade. Contava coisas banais, como quando o micro-ondas quebrou e eu precisei levá-lo no conserto. Inventava que já tinha conhecido outro carinha, que era muito inteligente e tinha um emprego. Na verdade, eu queria poder dizer ao meu pai que eu havia tomado um pé na bunda horroroso, que havia largado tudo e que estava escrevendo uma peça, que estava trabalhando com um diretor famoso, quero dizer, eles não fariam a menor ideia, claro, mas eu explicaria que Klaus era um diretor famoso, um gênio visionário. Eu esperava o momento certo de dizer isso. Muitas vezes estive a ponto de dizer. Mas os meses foram passando e eu não dizia nada. Quando aquilo acabasse, no entanto, quando a peça estreasse, eu me vingaria, eles me dariam razão e me perdoariam por tudo. Pedi um chá de hortelã, eu tinha bebido demais, minha cabeça parecia descolada do corpo.

Klaus passou então a me contar sobre o episódio de muito movimento que, óbvio, estava longe de ser um episódio movimentado de verdade, porque o que Klaus gostava nas coisas era de tudo, menos de movimento. Ele gostava do que chamava de tempos longos, de chuva, de molhar as bolachas no leite, e era um negócio péssimo aquele bigode cheio de leite, e, claro, ele gostava de gente maluca e perdida.

Nas histórias de terror, personagens misteriosos aparecem subitamente, Klaus me disse um dia, vestindo roupas de outro século, como se tivessem dormido durante anos e acordado de repente, como se tivessem dormido durante anos ou pela eternidade, o que dá na mesma, e então acordam e batem à nossa porta, famintos por sangue.

Era exatamente o que acontecia na nossa história, de acordo com Klaus. Uma manhã, um homem batia à porta de Trúnov. Não era noite, mas perto do meio-dia, o que no fim eu achava bom, nada clichê, o fato de a coisa toda acontecer em plena luz, na hora mais clara do dia.

Sob o arco da porta, o homem aguardava. Era um soldado. Tinha a cara empoeirada e não mais do que trinta anos. O que era inesquecível nele, Klaus dizia, como se não tivesse inventado aquilo de repente, eram os cabelos brancos, que contrastavam com o rosto muito jovem, a cara magra e ruiva, a cabeça cansada. Ele trazia um lenço amarrado no pulso esquerdo, usava uma calça escura, remendada nos joelhos. O casaco pobre e antigo, enfeitado com uma insígnia, dava a impressão de ser o melhor que tinha. Seria um homem bonito até, dizia, não fosse um ar geral de cansaço, com rugas de expressão que se entrelaçavam e reforçavam os traços. É o senhor Trúnov, o pintor?, ele perguntava.

De pé, a meio caminho entre a porta e a chaleira no fogo, Trúnov observava aquele soldado, atrás de uma cortina de poeira, iluminado pela luz do sol fraco. Convidava-o a entrar. Eu tenho um pedido, dizia o soldado, gostaria de ver o senhor por causa de um quadro, gostaria que o senhor me retratasse num de seus quadros. Trúnov deu uns passos para trás, chegou mais perto do fogo e assim permaneceu por um tempo, olhando o fogo, olhando aquele homem. Ficou esquentando as mãos. Tomou um gole de água numa cumbuca lustrosa. Enxugou os lábios nas mangas do agasalho de aniagem escura (esse era um detalhe que eu havia pesquisado e que Klaus agora usava e que, na minha modesta opinião, dava toda a graça da cena). O olhar do soldado flutuava pelo castiçal de prata sobre a mesa, o relógio na parede com a imagem do tsar Pedro 1º (eu novamente), as achas de lenha, e voltava a pousar em Trúnov, aguardando uma resposta, que parecia demorar um pouco demais, e eu achava que teríamos que corrigir isso depois.

Trúnov dizia então que sim, que poderia pintá-lo. Agradecia a visita e o interesse do homem. Dizia que costumava fazer quadros do tipo e que sem dúvida poderia pintá-lo, embora aquilo fosse novo, não era comum que viessem até ele, ele é quem normalmente saía em busca de homens e mulheres dispostos a posar.

Depois de um breve silêncio e percebendo que o soldado não falaria mais nada, Trúnov perguntou como ele gostaria de ser retratado.

Nessa hora, Klaus falou que tinha imaginado um jogo de luzes complexo e perfeitamente uniforme, queria que a hesitação entre a pergunta de Trúnov e a resposta do soldado se destacasse, como se fosse algo sólido, pesado, algo que pudéssemos sentir. O soldado ficaria em silêncio, olharia fixamente para Trúnov e diria: no meio da batalha. No meio dos outros oficiais. Gostaria que fosse numa trincheira ou sobre o cavalo carregando uma bandeira. Com a esquadra inimiga ao longe, as baterias brancas da costa, quartéis, aquedutos, nuvens de fumaça, o vento no rosto. No horizonte, os fogos da tropa inimiga.

A consciência da solidão no perigo, falou Klaus. É o tipo de sentimento que devemos trabalhar. Você está anotando?

Klaus enfiou na boca um pedaço de pão, tomou um gole de leite.

Eu perguntei se no fim Trúnov aceitaria fazer o quadro.

Sim, claro, respondeu Klaus. Este é o acontecimento que vai levar nossa história adiante, falou, abaixando a cabeça, com um olhar triste. Mas Trúnov não iria com o soldado para o meio do campo de batalha, continuou. Faria diferente. A cena seria montada no pátio de uma oficina. Civis e soldados seriam convocados, com armas, com suas melhores roupas. Enfileirariam cavalos. A cena seria montada em detalhes.

No palco, nesse momento, vamos fazer o soldado surgir sob uma luz diferente. Suave e limpa. Essa é uma coisa importante, Nadia, vamos fazer assim, exatamente assim.


Emilio Fraia, escritor, é autor do romance "O Verão do Chibo", em parceria com Vanessa Barbara (Alfaguara, 2008), e da graphic novel "Campo em Branco" (Companhia das Letras, 2013, com DW Ribatski).

Antonio Dias, artista plástico paraibano (1944-2018), é autor da obra que ilustra esta página e está em exposição no espaço Auroras até 6/10.

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