Descrição de chapéu Memorabilia

Aprendi com Van Gogh a associar palavra e imagem, diz Luiz Fernando Carvalho

Cineasta fala sobre a influência que escritos do artista tiveram em seu filme 'Lavoura Arcaica'

Luiz Fernando Carvalho

“Cartas a Theo” é um livro mágico. Fonte primária e fundamental para a compreensão e o estudo da obra de Vincent van Gogh. Relato que trança reflexões estéticas com paisagens existenciais da vida do pintor. 

Categoria inominável de gênero narrativo, substância primordial que me orientou na tentativa de criar um filme a partir do oratório barroco de Raduan Nassar. Nasce do encontro com as “Cartas a Theo” a busca por não desassociar o cinema da literatura, as palavras das imagens.

escritos e desenho de lavoura
Reprodução de carta escrita por Vincent van Gogh

O ofício de um artista é a sua própria travessia de um estado a outro. 

A cada passo, oferecer aos olhos do espectador uma experiência, como um pintor seleciona e transmuta sua palheta, como um pajé colhe suas folhas para sorver delas seu elixir sagrado. Só transcende a construção técnica de um filme aquele que se oferenda à face mais desconhecida das visões, logo contaminando a escuridão da sala como uma peste.

A colheita de toda essa experiência é a linguagem. Para além de semear a narrativa, ela é também a ferramenta que, com seu gume, cega um outro gume, o das verdades marteladas como leis absolutas. 
Linguagem é a morada da necessidade. O material essencial dos escritores são as palavras.

No “Lavoura Arcaica”, elas nos dão a impressão irresistível de estarem sendo vividas no ato da própria escrita, dando a este acontecimento a faísca de um embate entre alta passionalidade e alta reflexão —palavras que giram no tempo, redemoinhos, transe.

simone encostada na parede
Fotograma de "Lavoura Arcaica" (2001), de Luiz Fernando Carvalho, com a atriz Simone Spoladore

Dentre as várias possibilidades que se abriam para encontrar um método para dialogar com esta literatura, surgiu Antonin Artaud: “Onde outros propõem obras, eu mostro meu espírito”. 

O pensamento de Artaud caberia em Raduan. Afinal, assim como acontece em Clarice Lispector, somos levados a “ser” Clarice quando a lemos. Ou seria ela mesma quem nos lê? Alguém já disse: quando você a lê não é só ela que se expõe; nós, leitores, também nos expomos. “Corremos graves riscos quando falamos”, diz André, o filho tresmalhado de “Lavoura Arcaica” a seu pai. 

Raduan largou muitas linhas em minhas mãos, como a tentativa de equilíbrio diante da escolha trágica entre imagens ou palavras que jorram do romance. Confesso, arrastado por uma inquietante inversão, eu antevia: eram imagens enquanto palavras; palavras enquanto imagens. 

Estava perdido durante a preparação do filme, quando, em um dia qualquer, me reencontrei com as cartas de Van Gogh. Unidade perfeita entre palavra e imagem, processo e imaginação. E me lancei ali, avistando palavras, os olhos devorando o universo visual do pintor —ou seria em ordem inversa? Pouco importa. Não saberia mais dizer, falar. 

Nas “Cartas”, vertigem entre questões pictóricas e sua busca incansável por uma mediação impossível com o real: uma representação à altura dos sentidos do pintor, revelando nessa empreitada uma conexão estreita entre arte visual e literatura. “Livros, realidade e arte são todos a mesma coisa para mim”, escreveu Van Gogh em carta de 1883. 

“Cartas a Theo” me apresentara o abandono de uma ideia preconcebida de que uma imagem se faz de si própria, segundo a qual ela já é uma linguagem, possível de pertencer a um contexto de imagens —imagens como as outras, mas suficientemente e de tal modo escolhidas e dispostas que, através delas, passe algo de inefável. 

A lição das “Cartas” parece-me, ao contrário, que as imagens não são, desde sua origem, feitas de algo inefável. Elas são feitas de algo tátil, de algo que deve e pode ser construído: a imaginação! 

“Desta vez, é simplesmente o meu quarto, apenas a cor deve fazer tudo, e dar, pela sua simplificação, um estilo maior às coisas, ser sugestiva aqui do repouso ou do sono em geral. Numa palavra, a contemplação do quadro deve repousar a cabeça, ou melhor, a imaginação.” Assim descreveu Van Gogh ao irmão Theo, imaginando a pintura de seu quarto em Arles.

O paradoxo de um filme reside no fato de só ser cinema no exato momento de seu começo, na tela ainda em branco, quando nada ainda foi projetado na sua superfície. O que faz com que um filme seja cinema é uma espécie de ritual prévio que traça o espaço da consagração das imagens. Ou seja, em última análise, é o ritual da imaginação.

Cada palavra ou imagem é, de certo modo, uma transgressão da essência pura, branca, vazia e sagrada da imaginação, que faz de toda obra não uma realização literária ou cinematográfica, mas sua ruptura, sua queda.

Em nosso pequeno mundo de hoje, proclama-se, dia após dia, a morte da imaginação. Imaginar provoca medo, porque é por si só um rito libertário, de desobediência, ato cidadão, crime. Dilatem as retinas: o cinema, como qualquer engenho, habita a incompletude, a via da transformação, alçando o instante de se projetar em livre diálogo com nossa imaginação. 

Filmar é imaginar com a urgência de cometer transformações. Imaginar é assombrar-se com uma imagem tal que seja impossível separar criador da criação, ator da personagem, cinema da vida.


Luiz Fernando Carvalho, cineasta e diretor de TV, fez “Lavoura Arcaica”, a série “Capitu” e filma o romance “A Paixão Segundo G.H.”.

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