Dois meninos tentam espiar garota em conto russo nunca publicado; leia

Texto integra 'Antologia do Humor Russo' que será lançada em novembro

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Viktor Goliávkin

[SOBRE O TEXTO]  Este conto integra a “Antologia do Humor Russo”, que reúne textos de 39 autores organizados por Arlete Cavaliere, professora de cultura russa da USP. A obra será lançada pela editora 34 em novembro.

gato em janela
Ilustração - Francisca Nzenze

Eu nunca tinha visto uma luz tão bonita numa janela. E nunca tinha visto um abajur tão bonito. O abajur era lilás. E a lâmpada, talvez, avermelhada. Eu nunca tinha visto uma cor tão bonita, isso com certeza!

Kafárov e eu passamos umas duas vezes diante daquela janela. Erguíamos a cabeça com toda força, mas não conseguíamos ver Tássia Lébedeva.

A luz da janela iluminava as árvores. O céu estava preto. E ventava.

— Talvez ela não more ali. — disse eu.

— Eu sei que ela mora! — disse Kafárov.

Por alguma razão fiquei ofendido por não saber disso, e ele saber.

— Como você sabe? — perguntei.

— Vamos atravessar — disse ele.

Fomos para o outro lado da rua.

De pé do outro lado, nós furávamos a janela com os olhos.

— Agora ela aparece — disse Kafárov.

— E se não aparecer? — disse eu.

— Não tem como — disse Kafárov.

— Como você sabe? — perguntei.

Então nos sentamos.

— É que hoje a vimos na sala de aula... 

Ele nem queria me escutar.

— Olhe! Olhe! — gritou.

Na janela, alguma coisa passou correndo.

— Tem certeza de que foi ela? — perguntei.

— Claro!

— E se foi o pai dela?

— Santa paciência! Quer dizer que ele tem laços de fita no cabelo?

— Não vi nenhum laço de fita — disse eu.

— Mas eu vi — disse ele.

— Não tem laço nenhum. Acho que era o bigode.

— Eram laços — disse ele. — Dois laços.

— Está bem — disse eu. — Eram laços.

Um gato saiu para a janela. Olhava para nós. Como se tivesse saído especialmente para isso, para nos olhar. Na sacada vizinha um cachorro começou a latir para o gato. O gato não prestava nenhuma atenção ao cachorro. Pelo visto, sabia que o cachorro não tinha como pegá-lo.

— De qualquer modo, nós a vimos — disse ele.

— Foi o pai dela que nós vimos — disse eu. — Olhe! Olhe! — gritei.

Alguém encostou a mão no abajur, que começou a balançar de leve. As sombras se moveram pela cortina. Era como se todo o quarto se animasse. O quarto todo começou a balançar...

— Não viu? — perguntei.

— E você, viu? — perguntou Kafárov.

— Não tenho certeza se vi ou não — disse eu.

— Acho que eu vi — disse Kafárov.

— A sombra? — perguntei.

— A sombra — disse Kafárov.

— Na cortina?

— Na cortina.

— E se não for ela?

— Eu vi os laços — disse ele.

— Mas lá não tinha laço nenhum!

Agora eu via tudo com clareza. Ele tinha simplesmente imaginado aqueles laços!

— Dois laços — disse Kafárov. — Dois laços grandes...

— Talvez seja a avó, ou a mãe — disse eu.

— Você é que parece uma vovózinha — disse ele.

Ele tinha certeza de que era ela. Tinha certeza absoluta.

E nesse momento, nós a vimos.

Ela passou rapidamente diante de nós. Atravessou a rua. Acenou para o gato. Entrou no prédio. Em sua cabeça balançavam dois laços enormes... 


Viktor Goliávkin foi um escritor e artista gráfico russo (1929-2001).

Tradução de Yulia Mikaelyan, doutora em literatura russa pela USP.

Ilustração de Francisca Nzenze, artista plástica e ilustradora angolana.

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