[SOBRE O TEXTO] Este conto integra a “Antologia do Humor Russo”, que reúne textos de 39 autores organizados por Arlete Cavaliere, professora de cultura russa da USP. A obra será lançada pela editora 34 em novembro.
Eu nunca tinha visto uma luz tão bonita numa janela. E nunca tinha visto um abajur tão bonito. O abajur era lilás. E a lâmpada, talvez, avermelhada. Eu nunca tinha visto uma cor tão bonita, isso com certeza!
Kafárov e eu passamos umas duas vezes diante daquela janela. Erguíamos a cabeça com toda força, mas não conseguíamos ver Tássia Lébedeva.
A luz da janela iluminava as árvores. O céu estava preto. E ventava.
— Talvez ela não more ali. — disse eu.
— Eu sei que ela mora! — disse Kafárov.
Por alguma razão fiquei ofendido por não saber disso, e ele saber.
— Como você sabe? — perguntei.
— Vamos atravessar — disse ele.
Fomos para o outro lado da rua.
De pé do outro lado, nós furávamos a janela com os olhos.
— Agora ela aparece — disse Kafárov.
— E se não aparecer? — disse eu.
— Não tem como — disse Kafárov.
— Como você sabe? — perguntei.
Então nos sentamos.
— É que hoje a vimos na sala de aula...
Ele nem queria me escutar.
— Olhe! Olhe! — gritou.
Na janela, alguma coisa passou correndo.
— Tem certeza de que foi ela? — perguntei.
— Claro!
— E se foi o pai dela?
— Santa paciência! Quer dizer que ele tem laços de fita no cabelo?
— Não vi nenhum laço de fita — disse eu.
— Mas eu vi — disse ele.
— Não tem laço nenhum. Acho que era o bigode.
— Eram laços — disse ele. — Dois laços.
— Está bem — disse eu. — Eram laços.
Um gato saiu para a janela. Olhava para nós. Como se tivesse saído especialmente para isso, para nos olhar. Na sacada vizinha um cachorro começou a latir para o gato. O gato não prestava nenhuma atenção ao cachorro. Pelo visto, sabia que o cachorro não tinha como pegá-lo.
— De qualquer modo, nós a vimos — disse ele.
— Foi o pai dela que nós vimos — disse eu. — Olhe! Olhe! — gritei.
Alguém encostou a mão no abajur, que começou a balançar de leve. As sombras se moveram pela cortina. Era como se todo o quarto se animasse. O quarto todo começou a balançar...
— Não viu? — perguntei.
— E você, viu? — perguntou Kafárov.
— Não tenho certeza se vi ou não — disse eu.
— Acho que eu vi — disse Kafárov.
— A sombra? — perguntei.
— A sombra — disse Kafárov.
— Na cortina?
— Na cortina.
— E se não for ela?
— Eu vi os laços — disse ele.
— Mas lá não tinha laço nenhum!
Agora eu via tudo com clareza. Ele tinha simplesmente imaginado aqueles laços!
— Dois laços — disse Kafárov. — Dois laços grandes...
— Talvez seja a avó, ou a mãe — disse eu.
— Você é que parece uma vovózinha — disse ele.
Ele tinha certeza de que era ela. Tinha certeza absoluta.
E nesse momento, nós a vimos.
Ela passou rapidamente diante de nós. Atravessou a rua. Acenou para o gato. Entrou no prédio. Em sua cabeça balançavam dois laços enormes...
Viktor Goliávkin foi um escritor e artista gráfico russo (1929-2001).
Tradução de Yulia Mikaelyan, doutora em literatura russa pela USP.
Ilustração de Francisca Nzenze, artista plástica e ilustradora angolana.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.