#EleNão é parte do feminismo que vencerá crise mundial, diz autora americana

Nancy Fraser escreve artigo com pesquisadora brasileira sobre o movimento anti-Bolsonaro

Nancy Fraser Mayra Cotta

A resistência à escalada autoritária por meio da organização de lutas feministas é uma realidade global. E a campanha-em-movimento #EleNão, que levou centenas de milhares de mulheres às ruas no Brasil e pelo mundo no último sábado (29), é parte desse incrível processo de insurgência das vozes historicamente caladas na política.

Assim como o Brasil não está sozinho entre os países que vivenciam o sucesso eleitoral de projetos políticos quasi-fascistas, as mulheres brasileiras também não estão sozinhas na resistência feminista a esta onda de autoritarismos.

Por todo o mundo, da África do Sul à Polônia, da Espanha à Argentina, do Irã aos Estados Unidos, as mulheres, e em especial as mulheres não brancas, pobres e periféricas, estão enfrentando os homens que amam fardas e detestam a democracia.

Não é uma coincidência que essa realidade se desdobre no momento em que vivemos uma intensa crise global do sistema capitalista. Uma crise que não atinge apenas a economia, mas também a sociedade e nossas instituições. Afinal, o capitalismo não é apenas um sistema econômico, mas uma ordem social que institucionaliza sistemas de dominação.

Esta crise traz consigo o aprofundamento da desigualdade na distribuição das riquezas, o retrocesso de direitos arduamente conquistados, a ascensão violenta do racismo e da homofobia na retórica dos políticos e nas práticas sociais, a destruição irremediável da natureza e a intensificação de conflitos internos e externos.

E, como sempre, as mulheres estão na linha de frente de quem é mais profundamente afetada por esta crise sistêmica. Somos nós e nossos saberes tradicionais cuidando da terra que estamos sendo destruídas pela produção desenfreada. Somos nós perdendo nossos empregos para gestar e criar as novas gerações. Somos nós reduzindo nossa jornada de trabalho para poder cuidar dos idosos em casa.

Somos nós perdendo nossa saúde mental pela preocupação com os filhos que estão na rua. Somos nós distribuindo afeto para que aqueles ao nosso redor tenham um pouco de apoio nesse mundo cruel. Somos nós que seguimos apanhando em silêncio em casa para não desestabilizar a família.

Não é por acaso que a candidatura que celebra a ditadura militar e é entusiasta da tortura e da violência institucionalizada no Estado é a mesma candidatura que ataca as sexualidades não hétero e que não quer que gênero seja ensinado nas escolas.

A mobilização que vimos no sábado, e que continua firme e forte para além dos protestos, não apenas é contra uma candidatura específica, mas contra um projeto político que precisa ser derrotado. Precisamos expurgar do nosso arsenal político o recurso a respostas autoritárias para os momentos de crise.

Esse tipo de “solução” está profundamente arraigado numa estrutura masculina e racista de sociedade. E precisamos recusar veementemente a reprodução desta violência que está nos nossos lares e na nossa política, se retroalimentando.

A nossa resposta precisa ser mais democracia, mais participação das mulheres em todos os espaços de poder, desde à família até o Congresso. As relações de gênero e a distribuição desigual dos papéis sociais e dos privilégios entre homens e mulheres são parte dessa crise —e por isso nós mulheres estamos à frente desta resistência.

Desta perspectiva, é possível elaborar demandas ainda mais radicais e amplas, como o fim da divisão baseada em gênero entre trabalho formal remunerado e trabalho doméstico não remunerado, a construção de práticas afetivas e sexuais livres de dominação, o desenvolvimento de políticas públicas que apoiem as tarefas relacionadas à criação dos filhos, a autonomia reprodutiva e o enfrentamento das práticas violentas que vão do lar aos espaços públicos.

Aos tomarmos as ruas neste sábado, unidas em nossa diversidade, nós rompemos o isolamento doméstico real e simbólico de nossas lutas e demonstramos a potência política daquelas cujo trabalho remunerado e não remunerado sustenta o país.

Temos portanto convicção de que a saída para essa crise sistêmica se dará pelo feminismo. Mas não qualquer feminismo. Precisamos lembrar que o feminismo é um território em constante disputa, atravessado por questões de raça, sexualidade e classe que não podem ser ignoradas.

Em geral, a partir do momento em que falamos em “mulheres” como uma categoria universal e abstrata, apagamos a experiência das mulheres que acumulam outros tipos de opressão. Um feminismo liberal, aquele feminismo que se apoia em valores que exacerbam o individualismo e em noções de igualdade formal, acaba deixando para trás a maioria das mulheres.

Não acreditamos que avançamos quando os representantes do sistema financeiro, dos ruralistas e do grande capital são mulheres. A mera troca do gênero de quem controla as instituições falidas nada transforma.

Não vivemos em um mundo melhor se a pessoa que representa o extermínio das populações indígenas é uma mulher. Não avançamos nossas lutas se a diretora de uma companhia que explora seus trabalhadores é uma mulher. Paridade de gênero entre quem explora e oprime não é a igualdade que queremos.

Nos enfrentamentos feministas, precisamos constantemente avaliar se nossas energias políticas estão efetivamente desestabilizando as estruturas que nos oprimem ou se estamos apenas nos resignando a uma forma de capitalismo mais confortável para uma pequena fração das mulheres.

Nossa luta exige portanto uma coalizão ampla que seja incapaz de ignorar os entrelaçamentos de gênero, raça, sexualidade e classe na exploração e nas práticas de controle e opressão.

Nós queremos transformar o mundo, destruindo as estruturas de poder que nos oprimem. E o enfrentamento ao autoritarismo simbolizado na candidatura de Jair Bolsonaro é uma dimensão fundamental da nossa luta.


Nancy Fraser, filósofa e professora da New School for Social Research (Nova York), é um dos principais nomes da teoria feminista norte-americana.

Mayra Cotta é doutoranda em política na New School for Social Research (Nova York).

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