Escritores lidam com mortos mal enterrados da história brasileira

Aversão a esclarecer episódios trágicos do passado do país abre espaço para que espectros assombrem o presente

Marcos Vinícius Almeida

[RESUMO] Autor argumenta que aversão ao esclarecimento de episódios trágicos da história nacional abre espaço para que os espectros atormentados do passado exerçam constante pressão sobre aspectos do presente; produção literária recente, no entanto, tem se empenhado em lidar com esses fantasmas.

 

Quando o escritor Raymond Carver veio ao Brasil, em 1986 —além de jantar com Moacyr Scliar e visitar escolas nas quais ninguém tinha lido seus livros e tampouco se falava inglês—, ele escreveu um poema. 
Nos versos de abertura desse texto, intitulado “Bahia, Brasil”, o poeta inaugura seu canto a partir de uma espécie de espanto diante da quantidade de chuva que jorra do céu, como de baldes, “desde a Criação”. 

Mas é a partir do segundo verso que vem o elemento mais interessante, na recente tradução de Cide Piquet: “[...] Os edifícios/no velho bairro escravo se dissolvem,/e ninguém liga. Não os fantasmas/dos velhos escravos, ou dos novos./ A água é um prazer em suas costas laceradas./Eles poderiam chorar de alívio”. 

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O escritor Raymond Carver (1938-1988) em foto tirada em 1984 nos Estados Unidos. - Bob Adelman/Corbis

Esses versos evidenciam uma questão que está no cerne daquilo que tenho chamado de “lógica do espectro”: uma aparição que se impõe, onde o autor, assim como os cavalos da umbanda ou os médiuns, não é nada além de um meio. Um instrumento necromante no qual o espírito se assenta e se põe a falar.

A chuva descomunal pode ser lida como uma imagem da quantidade de lágrimas necessárias para lavar os crimes históricos. Uma chuva tão poderosa que dissolveria os edifícios, rastros ao mesmo tempo concretos e espectrais reverberando a dor dos negros através dos séculos.

E Carver expressou bem nossa relação com a história, nossa tendência ao esquecimento. Pois os edifícios, as marcas, os índices concretos da barbárie desaparecem, e “ninguém liga”, exceto os fantasmas, que continuam a assombrar essas ruínas. 

Se a história do século 20 se constitui sob o signo da catástrofe, a história da formação social e cultural do Brasil é um acúmulo de catástrofes. 

E se, diante do trauma da ditadura civil-militar, a narrativa testemunhal tem lutado contra o esquecimento dos mortos e desaparecidos, em relação aos traumas da colonização e da escravidão o combate é mais difuso e difícil.

Desse pesadelo sangrento que é nossa formação histórica, restam apenas as ruínas, fragmentos de arquivos e a potência da ancestralidade. É necessário evocar esses fantasmas. Reconhecer que coabitamos o espaço com os mortos. Assumir nossa dívida.

No canto 11 da “Odisseia”, Ulisses está na terra dos feácios contando suas aventuras. Aqui aparece uma das passagens mais sombrias do poema: o mergulho no mundo dos mortos, a mansão de Hades. 

Ulisses desce ao reino dos mortos para evocar Tirésias, cujos olhos cegos, intempestivamente anacrônicos, podem atravessar os dias e olhar o futuro. O herói fura uma vala e a enche com o sangue de uma ovelha recém-abatida. Mas, antes que Tirésias possa se manifestar, a legião de mortos fareja o calor do sangue e se amontoa diante de Ulisses, que tenta espantá-la com uma espada.

Nesse momento, surge o espírito de Elpenor, abandonado insepulto no palácio de Circe. “Peço que te lembres de mim, quando te fores”, diz o espírito. “Não partas deixando-me para trás, sem pranteio e insepulto.”

Se o espírito sem túmulo não está separado do mundo dos vivos, tampouco está adequado ao mundo dos mortos. Habitante desse entrelugar, Elpenor é o protótipo do espectro.

“Hamlet” começa pelo retorno já esperado do rei morto, lembra Jacques Derrida em “Espectros de Marx” (ed. Relume Dumará). O retorno é, ao mesmo tempo, uma primeira vez e uma repetição. Repetição porque “um espectro é sempre um ‘retornante’”, o que volta dos mortos. Incontrolável, o espectro não respeita a tranquilidade do tempo linear.

Para Derrida, o espectro é furtivo e intempestivo. É o morto mal enterrado, a figura atormentada do passado que irrompe no presente. Os mortos estão ao nosso lado, exigindo resposta. “Lembra de mim”, diz o espectro do rei morto ao se despedir do príncipe. “Lembra de mim”, diz o vulto de Elpenor a Ulisses.

O espectro é uma poderosa metáfora da memória. Ao aparecer, revela a falácia de um presente pacificado, puro, que rolaria rumo ao futuro sem obstáculos. O cortejo triunfal do progresso só pode avançar ao custo de sobrepujar uma legião de cadáveres, ao custo do recalque dos seus crimes, ao custo do apagamento sistemático da memória. 

(Vivemos isso hoje: a amnésia histórica em relação ao extermínio da população indígena, à escravização da população negra, à tortura dos opositores nos períodos autoritários —Estado Novo e golpe de 1964. O esquecimento desses crimes históricos é também o que permite a naturalização do discurso autoritário do candidato Jair Bolsonaro. O sono da memória produz pesadelos reais.)

O ritual necromante de Ulisses, na visão de Jeanne Marie Gagnebin, prefigura o gesto do historiador, “cuja pena retraça, ou não, os atos de sofrimento dos mortos que nos precederam”. Em especial, daqueles esquecidos pela história, cujas memórias estilhaçadas devem ser recolhidas. A história assume aqui a configuração de um “rito de sepultamento”.

Se a nossa história é assombrada por catástrofes, a escrita assume não apenas a função de prática necromante mas também o caráter de ritual exorcista. A produção literária que dialoga com a história (a ficção histórica, o romance histórico, o testemunho e a memória) termina por ser contaminada e estimulada por esses elementos espectrais. 

No campo mais específico da ficção contemporânea recentíssima, temos o caso de “O Marechal de Costas” (2016), de José Luiz Passos, “De Mim Já Nem se Lembra” (2016), de Luiz Ruffato, e “A Noite da Espera” (2017), de Milton Hatoum, todos da Companhia das Letras. 

A obra de Passos nasceu do encontro furtivo com o “fantasma” de Silvino de Macedo, que “habitava” um folheto perdido num sebo em Recife, episódio extraliterário que motivou a escrita do conto e depois do romance.

Nela, a evocação da voz dos mortos se dá pelo procedimento de transcrição de textos antigos, inseridos no corpo presente da narrativa sem aspas. As vozes dos vivos e dos mortos estão juntas, num processo de coabitação do espaço e do tempo.

Passos também acaba escavando episódios sombrios da história brasileira: “A ordem era enterrar os cadáveres a cinquenta metros do lugar do suplício, em covas sem marca e campo aberto, deixando a grama crescer por cima, para que as sepulturas se percam. Essa informação foi transmitida aos supliciados. Entre eles, o praça Isácio Coati tem apenas 14 anos”.

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O escritor José Luiz Passos na Flip de 2014 - Danilo Verpa/Folhapress

Esse apagamento da memória, comum em regimes totalitários —seja em campos de concentração nazistas ou em ditaduras sul-americanas—, é aqui antecipado de maneira cruel pela Primeira República, que nasceu com um discurso de liberdade e ordem contra a velha Monarquia. 

A permanência fantasmal reverbera na linguagem, no núcleo duro da frase, no próprio tempo verbal: “Isácio Coati tem apenas 14 anos”. Seu espectro continua presente, informa o verbo “tem”, como continua presente, na repetição do que não foi inscrito na memória, o assassinato de jovens pelas mãos do Estado.

Na obra de Ruffato, o narrador carrega durante anos velhas cartas do irmão mais velho, endereçadas à mãe. Um dia, numa mudança, essas cartas, como um fantasma traiçoeiro, “saltam à sua frente” e se impõem. Ao lê-las, o narrador vai ao encontro da voz de um morto, seu irmão José Célio, um torneiro mecânico que esteve envolvido com o movimento sindical no período da ditadura.

Se para o narrador o encontro com a voz do irmão morto funciona como um processo de elaboração de um luto privado, os índices históricos nas cartas remetem também a um luto público, dos mortos e desaparecidos durante os anos de chumbo. Assim, desde o título, o livro inaugura um chamado, como se dissesse: “Lembra de mim” —como o fantasma de Hamlet—, você que “de mim já nem se lembra”.

Já em “A Noite da Espera”, de Milton Hatoum, o narrador Martim está exilado em Paris, por conta da ditadura no Brasil. Cercado por um mar de papéis, seus e de amigos, ele tenta compreender uma complicada relação com o pai e com a mãe.

Entre diários e cartas de amigos e familiares, alguns vivos, outros mortos, ele sentencia, em uma referência a Hamlet: “Fantasmas que surgem a qualquer momento entre o anoitecer e a primeira luz da manhã…”. E continua: “Talvez seja isso o exílio: uma longa insônia em que fantasmas reaparecem com a língua materna, adquirem vida na linguagem, sobrevivem nas palavras…”.

Walter Benjamin escreve que a figura do anjo da história —arrastada pela tempestade do progresso, enquanto uma monumental ruína se ergue aos seus pés— gostaria de parar e recolher os mortos. Em certa medida, é o que tem tentado fazer a nossa ficção. Afinal, nem mesmo os mortos, diz Benjamin, estão seguros diante do autoritarismo. 


Marcos Vinícius Almeida, escritor e jornalista, é mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP e autor de "Paisagem Interior" (ed. Penalux, 2017).

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