Poeta polonês descreve o sono tranquilo dos torturadores

Zbigniew Herbert foi um dos maiores nomes da literatura de seu país no século 20 e tem obra completa traduzida

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Zbigniew Herbert

[SOBRE O TEXTO]  O poeta polonês, um dos principais nomes da literatura de seu país no século 20, é objeto de homenagens da Embaixada da Polônia no Brasil nos 20 anos de sua morte. A obra completa deve ser lançada por aqui em 2019, incluindo o poema nesta página.

colagem com pessoas, flores, cabra e avião
Ilustração para Imaginação - Marcos Antônio

À memória de Jean Améry

1
Os torturadores dormem tranquilos têm sonhos cor-de-rosa
os bonachões genocidas a quem já perdoou
a curta memória humana —os estrangeiros e os da tribo
o vento suave vira as páginas dos álbuns de família
as janelas da casa abertas para agosto a sombra da macieira em flor
sob a qual se aglomerou a fina estirpe
a carruagem aberta do avô a expedição até a igreja
a primeira comunhão o primeiro abraço da mãe
a fogueira numa clareira e o céu estrelado acima
sem sinais e mistérios sem apocalipse
então dormem tranquilos têm sonhos nutritivos
cheios de alimento bebidas gordos corpos femininos
com os quais jogos amorosos nos emaranhados dos bosques
e acima disso tudo flui uma voz inesquecível
uma voz límpida como uma fonte inocente como um eco
acerca do menino que encontrou uma rosa no prado entre as urzes

o sino da memória não desperta fantasmas nem pesadelos
o sino da memória repete a grande absolvição

despertam cedo pela manhã cheios de vontade de potência
meticulosamente barbeiam suas bochechas de comerciantes
ajeitam os restos de cabelo como uma coroa de louros
sob a água do esquecimento que lava tudo
ensaboam seu corpo com sabonete da marca Macbeth

2
Por que o sonho – o refúgio de todos os seres humanos
recusa a sua graça às vítimas da violência
por que à noite sangram entre os lençóis limpos
e entram nas suas camas como nas câmaras de torturas
como na cela da morte como na sombra da forca
afinal eles também tiveram uma mãe e viram
o bosque a clareira a macieira em flor a rosa
quem baniu tudo isso dos recônditos da alma
eles também viveram instantes de felicidade então por que
seus rugidos despertam de noite os familiares inocentes
e irrompem mais uma vez numa fuga insana
batendo a cabeça na parede e depois não dormem mais
fitando obtusamente o relógio que nada mudará
o sino da memória repete o grande pavor
o sino da memória imutavelmente soa o alarme

deveras é duro confessar os torturadores venceram
as vítimas para toda a eternidade da vida já estão derrotadas

assim precisam por si mesmas conciliar-se com este castigo sem culpa
com a cicatriz da vergonha a impressão digital na bochecha
com a abjeta vontade de sobreviver a tentação de perdoar
e o relato sobre o inferno já desperta o legítimo desgosto

não existe mais o lugar para prestar queixa
vereditos inconcebíveis profere o tribunal dos sonhos 


Zbigniew Herbert foi um poeta, ensaísta e dramaturgo polonês (1924-1998).

Tradução de Piotr Kilanowski, professor de literatura polonesa na Universidade Federal do Paraná.

Ilustração de Marcos Antônio, artista plástico e ilustrador.

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