Na lista de decisões críticas para o Brasil, há uma que talvez ainda não tenha sido avaliada em toda a sua dimensão. Diz respeito à sobrevivência da atividade de produção audiovisual independente em uma economia em que imagem e som são quase onipresentes.
O vídeo sob demanda, onde e quando se queira, através de dispositivos acessíveis em caráter universal, já é parte da vida cotidiana. Conhecida como VoD (Video on Demand), essa tecnologia de propagação de imagens opera grandes transformações econômicas na cadeia produtiva do audiovisual.
O VoD vem substituindo o DVD, ao alugar e vender filmes online em plataformas como Apple e Google Play (T-VoD, ou VoD transacional); a TV por assinatura, ao oferecer subscrição de serviços como a Netflix e a Amazon (S-VoD, ou VoD por subscrição); e até de forma que se assemelha à monetização da TV aberta, como o YouTube (A-Vod, ou VoD com anunciantes, de acesso gratuito).
Diante das novas possibilidades abertas com essa mudança tecnológica, ficam invalidadas as regras vigentes no mercado audiovisual tradicional. Empresas locais se tornam frágeis e pequenas diante das gigantes globalizadas da internet e das telecomunicações, e os mecanismos correlatos para garantir a sobrevivência da produção audiovisual independente se tornam obsoletos.
A viabilização da economia audiovisual independente, em quase todos os países do mundo, está ligada a mecanismos de incentivo, leis de reserva de mercado, estímulos à produção. Ou seja, regulação e fomento. Isso ocorre e é aceito internacionalmente como procedimento inquestionável, porque se estabeleceu que os produtos da indústria cultural circulam livremente em transações comerciais internacionais.
Dessa forma, filmes, programação de TV e todas outras formas de audiovisual não pagam taxa de importação. Se considerarmos essa atividade pela face estritamente industrial e de mercado, podemos fazer um paralelo com outras indústrias.
O que seria das indústrias nacionais automobilísticas, alimentícias, de eletrônicos ou qualquer outra, se não houvesse tributo à importação ou regras de mercados regionais? Sobreviveriam à hegemonia de alguns países nesses setores?
Nessas circunstâncias, em consonância com a pauta internacional, estamos sempre a vigiar o crescimento do audiovisual brasileiro.
Não por acaso a Ancine vem discutindo o VoD desde 2015, e o Conselho Superior de Cinema, órgão que tem a atribuição de formular e implementar políticas públicas da área, dedica os principais esforços do atual mandato ao tema.
Mas a iniciativa vem se mostrando inconclusiva, por conflitos de interesse inerentes à própria natureza da atividade e dos representantes no Conselho.
A assimetria econômica do setor de produção independente, e mesmo das empresas de comunicação brasileiras, em comparação às gigantes internacionais, é imensa. A tal ponto que impossibilita aquilo que poderíamos chamar de "livre competição". E é diante dessa evidência que, em outros momentos, foram feitas legislações consonantes às existentes em vários países.
No cinema, a cota de tela, que existe desde os anos 1940, compele as salas a ocupar, atualmente, 14,5% do mercado com a exibição de filmes brasileiros. O público do cinema brasileiro gira em torno dessa mesma frequência (neste ano, estamos com 15,2% do público total até setembro). Ou seja, a grosso modo estaríamos sendo tão eficientes quanto o cinema estrangeiro.
Para a TV, também se previu em lei uma cota de tela (junto de um mecanismo de financiamento à produção), que se mostrou forte indutor da atividade. Antes de 2012, ano em que foi promulgada a Lei 12.485, exibia-se na TV por assinatura 1% de produtos audiovisuais brasileiros.
A lei obrigou que 2% da programação fosse nacional e, a partir desse impulso, a exibição chegou espontaneamente a 8%, em 2017. As TVs só perceberam o potencial do produto brasileiro ao começar a produzir e a exibir em escala maior.
A União Europeia acaba de anunciar uma cota de 30% para produtos audiovisuais europeus em VoD, além de várias outras medidas para estímulo da produção e presença de seus produtos nesse meio. Outros países estão tomando iniciativas semelhantes, mas o Brasil, se continuar na direção proposta até aqui pelo governo, terá retrocesso e ficará defasado.
O MinC se recusa a colocar em discussão a presença do conteúdo brasileiro nas plataformas de VoD. Se dispõe apenas a conversar sobre questões tributárias, que atendem à aspiração por "segurança jurídica" das gigantes e grandes empresas.
Os membros do setor de produção independente no Conselho Superior de Cinema não aceitaram essa posição. Diante do impasse, o assunto se esgotou e, desde o último dia 19, encontra-se nas mãos do governo para um eventual encaminhamento de projeto de lei ou medida provisória.
Que se tome consciência da importância dessa decisão, e que um governo em fim de mandato não se sinta em condições de enviar projeto desse teor a um Congresso na mesma situação. O mercado estratégico das narrativas que nos pertencem não deve ser tratado como um ativo econômico a ser liquidado no mercado.
André Klotzel é cineasta e membro do Conselho Superior de Cinema
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