Descrição de chapéu Memorabilia

Uma viagem a Angola me fez pensar sobre minhas raízes, conta Martinho da Vila

Sambista fala sobre como ver a escultura de um pensador o fez refletir sobre suas próprias heranças

Martinho da Vila

Estive em Angola no começo dos anos 1970. Na capital, Luanda, visitei feiras de artesanato que havia por toda a cidade. O mercado de Benfica era um dos mais populares do país, bem parecido com as feiras que temos aqui no Brasil. Andando por lá, me chamou a atenção uma peça chamada “O Pensador”. 

Vi a escultura em várias barraquinhas diferentes, algumas em formato maior, outras menores, e em diversos materiais, como marfim, mármore e pau preto. É uma figura que não se identifica se é homem ou mulher, se é jovem ou velho. 

Então me explicaram que aquilo era um símbolo importante em Angola. Não se sabe a autoria da obra nem a região de onde vem. Serve para as pessoas pensarem na sua ancestralidade, no seu passado.

estátua de madeira de homem pensando
A escultura "O Pensador", típica de Angola - Reprodução

Antes, eu nunca tinha sido muito ligado em obra de arte. Não gostava muito de museu, me dava uma sensação de velhice. Mas depois dessa ocasião busquei conhecer mais, fui atrás de outros escultores. Fiquei até amigo de artistas conhecidos como o Chichorro e o Malangatana, de Moçambique.

As reflexões daquele “Pensador” me despertaram para trabalhar mais com minhas próprias heranças. A viagem para Angola foi uma das mais importantes da minha vida.

Viajei a convite de um empresário português, que me ligou para fazer um show junto com um grupo chamado Os Cunhas. Eu aceitei na hora. Queria ir para conhecer o país, nem era para cantar. 

Eu sempre tive curiosidade. Decidi ir de qualquer forma que fosse e hoje digo: pisar no solo africano é algo incrível, principalmente para um preto.

Fizemos um show no N’Gola Cine, um local onde se faziam apresentações mais populares, na periferia de Luanda. E outro em um cinema do lado oposto da cidade.

Uma das apresentações foi no dia 7 de setembro. Eu, que fui sargento do Exército, dava muita importância a essas datas. Mencionei durante o show que aquele era o Dia da Independência no Brasil e disse “viva a liberdade!”. E acabou que isso deu uma confusão danada… [Angola só se tornaria independente de Portugal anos depois, em 1975].

Depois viajamos o país —para Benguela, Lobito, Huambo, Moçâmedes. Fiz questão de fazer o trajeto todo por terra. Só a volta para Benguela me convenceram a fazer de avião. 

Não imaginava que tinha todo esse público. Aquelas pessoas todas conheciam a minha música, apesar de não me reconhecerem. A música brasileira sempre entrou muito nas rádios da África —por isso sempre fiz uma força para trazer a música africana para o Brasil. 

Quando voltei de viagem, o primeiro disco que fiz foi “Origens”, de 1973. Pensei nos meus ancestrais, tanto africanos como brasileiros. Coloquei nas canções sons típicos da África e misturei à minha raiz musical, o samba, incluindo “Pelo Telefone”, clássico do Donga. 

É importante voltar às origens, porque permite refletir sobre o caminho que você percorreu como pessoa e como povo. O passado é uma referência: o motivo pelo qual a gente mais briga no Brasil é que não temos grandes referências históricas. O grande presidente, o grande prêmio Nobel. E com a herança da África a relação é pior ainda.

Na minha época de escola, estudei todos os continentes, menos o africano, que era como uma incógnita, uma grande floresta. Isso é fruto do preconceito. Aqui não tinha um evento de cultura negra. Eu nunca soube que havia figuras históricas negras brasileiras importantes: só aprendi depois, quando fui me informar. 

Entendi que, desde a época do Império, o Brasil procurava se branquear. Até pela prática de importar trabalhadores europeus quando se libertaram os escravos, prometendo a estrangeiros terras, ferramentas e subsídios, em vez de empregar os próprios negros livres. 

Estudar a história, e a sua própria história, é fundamental. Principalmente quando você tira suas próprias concepções, porque tudo é sempre escrito pelos dominadores. Estudando suas raízes, você começa a pensar em um futuro melhor. 


Martinho da Vila, cantor e compositor, é um dos principais sambistas do Brasil.

Depoimento a Walter Porto

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