Alucinações podem gerar consequências positivas, aponta pesquisa

Estudo britânico indica que abandono de atitude de conflito pode ser benéfica ao paciente

Alex Fradera

[RESUMO] Pesquisa do Reino Unido indica que a mudança no tratamento de episódios alucinatórios, com o abandono de uma atitude de conflito em relação a eles, pode permitir que pacientes extraiam consequências positivas dessas experiências.

 

Contemple de que forma a vida de uma pessoa pode ser mudada caso ela comece a ouvir ou ver coisas que os outros não ouvem e veem. Agora imagine que essa experiência possa oferecer algo de positivo. 

Uma equipe de pesquisa da Universidade de Hull e de organizações associadas ao Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) do Reino Unido sugere que, em meio ao tumulto, alucinações também podem oferecer oportunidades de crescimento pessoal. 

homem com três olhos
Capa da Ilustríssima de 11/11 - Marcelo Cipis

Em um artigo publicado pela revista acadêmica Journal of Psychology and Psychotherapy, há alguns meses, a psicóloga clínica Lily Dixon e sua equipe detalham as experiências de sete pessoas que conviveram com alucinações auditivas ou verbais. Em meio às dificuldades, reportam os pesquisadores, suas jornadas também as levaram a algumas situações positivas.

Os cinco homens e duas mulheres, com idades entre 28 e 53 anos, foram recrutados para as entrevistas em organizações de saúde mental. Alguns começaram a experimentar alucinações ainda na infância; outros, mais tarde na vida.

Os pesquisadores entrevistaram todos os voluntários sobre como a experiência promoveu mudanças neles e em seus relacionamentos; sobre os desafios que enfrentaram; e sobre suas expectativas para o futuro.

Os entrevistados todos descreveram o surgimento das alucinações como um choque nada bem-vindo. “Não quero aceitar que seja esquizofrenia, porque sempre serei rotulada com essa palavra. Se você diz a alguém que tem esquizofrenia, a pessoa automaticamente pensa que você é doente mental e tentará matá-la”, disse Sophie, uma das entrevistadas (os nomes reais dos participantes não são usados no relatório). 

Ela sentiu que, para continuar a ser ela mesma, precisava rejeitar a experiência: “Estou tentando separar aquela pessoa; gosto de ser quem sou quando não ouço vozes”. 

Uma crença comum a muitos dos pesquisados era a de que melhorar significava reduzir ou eliminar as alucinações. Borrar as visões, silenciar as vozes. Mas, com o tempo, eles descobriram mudanças em seu foco.

Steve reportou um acontecimento que ficou em sua memória: “Lembro que estava na casa de minha melhor amiga e ela me recomendou conversar com elas, com as vozes, em lugar de ficar lá resistindo. Fiz o que ela aconselhou e conversei com elas; disse um oi. Elas responderam: ‘Ah, você enfim decidiu falar conosco?’ Fiquei pasmo”.

Dar aquele passo, partir da negação e do conflito para o engajamento, teve consequências para Steve, que passou a sentir que as vozes eram “mais prestativas que perturbadoras”. “É como ter um monte de amigos com quem falo todos os dias.” 

Outros ecoaram essa ideia de que quando uma pessoa encara suas experiências alucinatórias, em lugar de combatê-las, surge a possibilidade de extrair algum valor da experiência. A tal ponto que a perspectiva de deixar as vozes para trás pode já não parecer uma cura. 

“Muita gente pergunta o que eu faria se pudesse mudar as coisas, mas não sei se as mudaria, sabe? Aprendi a aceitar que isso é parte de mim agora”, disse um entrevistado. Outro afirmou que, sem suas alucinações, ele se sentiria “oco”.

O que de bom poderia vir das alucinações, exatamente? As respostas são difíceis de enquadrar, porque nenhum dos entrevistados as vê como um bem inquestionável, e eles não querem tentar o destino ao adotar um otimismo ingênuo. 

Uma das tônicas era a força que uma pessoa ganha como consequência de suas batalhas constantes. Debbie disse, de maneira hesitante: “Não me deixei derrotar, me tornei mais resistente... A voz me deu mais força e de alguma maneira fez de mim a pessoa que sou, mais forte”.

Outro traço positivo é que as alucinações intermediavam uma mudança de perspectiva com relação aos outros e mesmo com relação à experiência em si. “Talvez eu agora mostre mais empatia, mais do que costumava”, disse um entrevistado. Outro descreveu: “O processo mudou a maneira pela qual vejo os outros, penso sobre as atitudes dos outros e a maneira da qual me vejo”.

O comentário autoinquisitivo de Paul oferece uma visão especialmente expansiva: “Creio que eu teria sido muito mais destrutivo, em lugar de construtivo, se não estivesse vendo e ouvindo coisas... Creio que isso mudou minhas perspectivas sobre... Sobre certas coisas, sabe, ou simplesmente me ensinou a sentar e ver o mundo passar, em lugar de tentar derrotá-lo”. 

O que facilitou essa jornada do desânimo a um crescimento, ainda que agridoce? Os relatórios sugerem que participação, aceitação e apoio emocional —ter “alguém que ouça”— foi essencial. 

Mas a jornada às vezes requer que a pessoa se mova contra o vento dominante. Um entrevistado aconselhou: “Não desista de querer se tornar você, em lugar de [se adaptar] à sociedade em que você vive ou qualquer outra coisa, esqueça tudo isso, esqueça tudo mais, você tem de se sentir confortável com você mesmo”.

A qualidade dos serviços profissionais também foi crucial: clínicos que oferecem visões alarmistas e que estigmatizam os pacientes são um obstáculo comum. O apoio que pareceu mais útil se baseia na introdução de técnicas como mindfulness e relaxamento e no engajamento com a rede Hearing Voices (ouvindo vozes), que mostra aos pacientes que eles não estão sozinhos. 

Essa normalização e engajamento significa que ter uma experiência atípica de realidade já não separa a pessoa da sociedade, mas oferece um papel diferente no qual as experiências de uma pessoa podem fazer diferença. Não se trata de uma história simples. Os participantes continuam a ver suas alucinações como algo que os atrapalha, mas agora essa visão é misturada com a possibilidade de algum enriquecimento. 

A equipe de Dixon recomendou que profissionais, amigos e parentes (mas especialmente os clínicos) próximos das pessoas que têm esse tipo de experiência evitem estigmatizá-las e as apoiem de todas as maneiras, compreendendo que o fato de manterem uma relação complexa com a realidade não as torna pessoas menos plenas.


Alex Fradera é redator da BPS Research  Digest e psicólogo que trabalha em função terapêutica no Serviço Nacional de Saúde britânico.

Este texto foi originalmente publicado pelo site Aeon, adaptado de um artigo do periódico The  British  Psychological  Society’s  Research  Digest.

Tradução de Paulo Migliacci.

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