Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Bolsonaro é o primeiro líder popular da direita brasileira, afirma autor

Sucesso do presidente eleito dependeu de um sistema político com o qual ele mostra pouca afinidade

Renato Lessa

[RESUMO] Autor discorre sobre aspectos envolvidos na vitória de Bolsonaro, que classifica como o primeiro líder popular da direita brasileira e um personagem cujo sucesso dependeu de valores e regras de um sistema político com o qual mostra pouca afinidade.

 

O deputado Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República com cerca de 55% de votos válidos, pouco mais de um terço do eleitorado e um quarto da população. É suficiente para a investidura. Mas não para si mesmo. 

A conquista, diz, materializa a verdade e a vontade divina. Três fundamentos da soberania compõem um quadro um tanto confuso: substrato popular, expresso pela vontade majoritária; alucinação dogmática, pela autoidentificação com a verdade; e autolegitimação teocrática.

Os que se apegam ao primeiro aspecto regozijam-se com a “solidez da democracia” brasileira. Debitam os demais na cota de excentricidades e retórica. Ledo engano. O personagem nada tem de excêntrico; ademais, o repertório não é suficiente para estruturar algo que pareça um argumento. O homem, quando espontâneo, fala pelo fígado. Com efeito, mais que nervos, parece ter fígado de aço.

Desconhecemos ainda o prazo de validade, mas não parece descabido dizer que se trata do primeiro líder popular da direita brasileira, desde que povo há por cá. A trajetória da política popular no Brasil teve início com a República de 1946.

Sua história testemunhou o fracasso renitente da direita eleitoral, nas campanhas do brigadeiro Eduardo Gomes (1945 e 1950), contra Dutra e Getúlio, e do marechal Juarez Távora, que se opôs a Juscelino em 1955. O espasmo janista, em 1960, foi o que foi: um experimento etílico falhado.

Carlos Lacerda foi abatido pelo “movimento” que ajudara a deflagrar em 1964, quando acreditava ter uma das mãos na taça para a eleição cancelada de 1965. O regime de 1964, por dispensar o povo, dispensou, por lógica, lideres populares, inclusive os da direita.

Com a democracia, aberta em 1985, Collor viria a ocupar de modo efêmero a função, mas deu-se o que se deu: um experimento tóxico falhado. Do brigadeiro a Collor, impõe-se dizer, por dever de justiça, que nenhum deles teve verdugos como inspiradores.

De lá para cá, a direita brasileira valeu-se de interpostas pessoas, em candidatos que não possuíam DNA direitista originário, por mais que para tal possam ter se esforçado. 

Dada a natureza binária da competição política nacional, desde 1989, o PSDB cumpriu importante papel de canalização, para o âmbito da vida constitucional, de parcela significativa do voto à direita do centro. Um dos desastres inscritos no processo político recente é o da implosão desse elemento de filtragem.

Mas era mesmo questão de tempo que, em cenário de competição aberta, a direita brasileira encontrasse expressão eleitoral direta. Há algum sentido na coisa.

Saímos da ditadura, em 1985, inclinados à esquerda. O pacto constitucional de 1988, com suas cláusulas pétreas, entre as quais direitos fundamentais dos brasileiros, bem o indica. Década e meia de governos à esquerda, por sua vez, deram passagem à inclinação à direita, que ora se materializa do modo mais nítido e brutal. 

Um naturalista diria que a hegemonia de um campo acaba por preparar, na ordem do tempo e das coisas, o trajeto hegemônico do oposto. Esse truísmo naturalista não está aqui a serviço da crença apaziguadora de que somos governados cosmicamente por movimentos pendulares. Como tudo na vida, o tempo também pode dar defeito, e a espera da volta do pêndulo, mais do que demorada, pode ser em vão.

Não há nada que garanta que o candidato vitorioso em 2018 seja o desaguadouro natural e verdadeiro da direita brasileira. O genérico “direita brasileira”, por sua vez, está longe de ser um compacto dotado de nitidez absoluta.

Há muitas correntes formadoras do caudal, desde verdugos recalcados até pacatos cidadãos de centro-direita. Como de hábito, a unidade é função da ojeriza a algum “inimigo”, produzida por uma repulsa que ultrapassa o diferendo político ordinário e toma a forma de um estranhamento existencial. 

A imagem do outro existencial pode conduzir a cenários macabros. Um de nossos melhores sociólogos, José de Souza Martins, se dedica há tempos à observação do fenômeno dos linchamentos, modalidade sociopática na qual temos destaque internacional.

Com ele aprendemos que uma condição necessária para a ocorrência de linchamentos é a formação instantânea de uma multidão movida por ímpetos tanto eliminacionistas quanto autopurificadores.

Consumada a destruição física do corpo do impuro, elimina-se do mundo dos vivos um vetor de malignidade, ao mesmo tempo em que se purifica a multidão-agente. O ápice da purificação dá-se pela incineração do vitimado e sua redução à pura dimensão inorgânica e mineral. Moral da história: mais que matar, é necessário mineralizar; mais que prender, é necessário fazer apodrecer. 

O mais perturbador é perceber que a multidão que lincha, uma vez decomposta em suas partes individuais, além de incluir assassinos patológicos, conta com gente pacífica e ordinária, que ama os filhos, comparece aos cultos e paga impostos.

Não se trata de sugerir, de modo alarmista, que algo como uma “lynching mob” esteja em formação. É razoável supor que, embora um ânimo eliminacionista e purificador possa permanecer como cláusula pétrea ou “ideal regulador” de segmentos sinceros e radicais, o corpo mais amplo dos apoiadores do presidente eleito reflua para assuntos comuns da vida e nichos ordinários da sociabilidade. 

De todo modo, é fundamental desenvolver um sistema de premonições, avisos precoces e detecção de sinais.

Tal sistema poderia adotar como fulcro a advertência de Primo Levi no prefácio de sua primeira obra-prima, “É Isto um Homem?”: se a proposição “todo estrangeiro é um inimigo” for posta como premissa maior indisputada de um argumento, o campo de extermínio aparece como uma de suas conclusões possíveis.

A ostensão da verdade —coadjuvada pela sanção divina— como elemento de descrição e significação de uma vitória política tem muito mais a ver com a lógica abjeta da “tomada do poder” que da “conquista eleitoral do governo”. Os sinais parecem ser, mais do que inequívocos, primários: a linha demarcatória da verdade distingue o campo da sanidade cívica de um campo estrangeiro composto por sujeitos dispensáveis. 

Luis Fernando Verissimo, em seu humor único de homem cético, no artigo “Os omissos” (O Globo, 1º/11), sugere que aos inimigos seja imposto o uso de uma estrela vermelha, costurada sobre a roupa. Ele acrescenta à sugestão a garantia de que a coisa já deu certo em outras ocasiões. 

Haverá quem julgue que há exagero no que aqui escrevo. Como cético, não faço questão de estar certo, mas creio poder haver no exagero —se for o caso— uma função esclarecedora. O presidente eleito traz em si uma combinação de fatores de expressão imprevisível e perigosa. É importante tentar decompor os seus elementos. 

Os anos que passou no Exército foram diminutos diante do tempo no qual exerceu mandato parlamentar. Há sete legislaturas ocupa uma cadeira na Câmara dos Deputados. Pelo histórico trabalhista, é antes um deputado que um capitão. Como tal, ocupou o mundo do baixo clero legislativo. Seus momentos de destaque se deram por meio de manifestações improferíveis por quem não dispõe de imunidade parlamentar. 

A vitória eleitoral em 2018 traz para o proscênio do país um profissional da periferia do sistema político. Isto é inédito entre nós. Sua dimensão periférica é pelo menos dupla: pelo desempenho como deputado e pela negação do espaço parlamentar como expressão do diverso e do contraditório. Em miúdos: o que se diz na periferia, se repetido no proscênio, produz efeitos devastadores. 

Ao mesmo tempo, seu sucesso eleitoral só se faz possível em cenário de competição política aberta. Foram as regras do sistema representativo que pavimentaram seu trajeto. Em suma: um personagem cujo sucesso dependeu dos valores e das regras de um sistema político aberto, com o qual, para por de modo moderado, manifesta escassa afinidade pessoal e doutrinária. 

A sensação de filme já visto é inevitável, mas pode ser enganadora. Não se trata de usar as regras da democracia para destrui-la, tal como ocorreu na Itália e na Alemanha, mas de reduzir —ou mesmo eliminar— os fundamentos e mecanismos liberais que a ela têm estado associados. 

Para tal, basta associar os termos “democracia” e “verdade”. Basta passar a dizer que a democracia, em sua essência, se realiza quando uma vontade majoritária se afirma, fixando um horizonte de verdade.

Basta dizer que os que foram postos fora da jurisdição da verdade devem ser submetidos a um outro tipo de direito, de natureza punitiva ou coisa ainda pior. Um sistema político fundado na verdade dispensa por natureza a operação de elementos internos de contenção, diante do que pensa poder impor aos desviantes. 

O léxico da contenção do poder foi fixado no nosso horizonte pela tradição liberal, desde o século 17. A captura do liberalismo por gente que veio ao mundo a negócios fez do tema da liberdade existencial dos humanos uma aspiração microeconômica e utilitária.

Em sua expressão paroxística, tal captura não é hostil à possibilidade de supressão de alguns direitos liberais clássicos para que o regime da liberdade econômica possa ter livre curso. 

Por essa via, tal liberalismo “verdadeiro” pode exigir, por exemplo, experimentos de enorme concentração de poder. É ficar a imaginar as reações de Locke, Montesquieu e Tocqueville diante de um superministério da liberdade econômica. 

O regime da verdade, turbinado com a expressão majoritária, impõe a desertificação cívica e cognitiva do país. Não por acaso, dois dos alvos preferenciais da recente emergência da verdade são o ativismo social e a vida intelectual e universitária. Mas, para que eliminem Marx e Gramsci do nosso quadro intelectual e existencial, terão que fazê-lo antes com Locke, Montesquieu e Tocqueville. 

Cada supressão particular e específica de direitos, para que deixe de ter consequências políticas e sociais, exigirá antes um ataque a princípios liberais. A supressão de cada movimento ou identidade específicos implicará o ataque contundente à liberdade genérica de organização e expressão. A defesa da incolumidade desse ordenamento liberal é crucial para o momento. 

Nesse sentido, a decisão unânime do Supremo em condenar ataques “legais” antes cometidos contra universidades nos dá algum alento. Ninguém está a salvo do “esquadrismo” solto nas ruas, mas está nas mãos do presidente eleito escolher entre a desordem do “esquadrismo” e a ordem constitucional.

A prevalecer o quadro constitucional vigente, na plenitude das suas garantias, Jair Bolsonaro exercerá as funções de presidente da República, pois para tal dispõe dos requisitos legais. Em caso de deslizamento para outra lógica de ocupação do poder, tudo pode acontecer; tais requisitos serão de nula valia. 

O mais provável é que se façam valer os versos da sábia marchinha “Rainha da Cor”, de Angela Maria: “Sargento manda no cabo/ Coronel, no capitão”. 


Renato Lessa é professor de filosofia política da PUC-Rio e pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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