Descrição de chapéu Memorabilia

Leonilson me ensinou que amor tem de ser radical, diz Mariana Lima

Atriz conta como trabalho do artista a sensibilizou e provocou reflexões para sua nova peça

Mariana Lima

​As fronteiras entre as artes existem para ser atravessadas. Sempre trabalhei com pessoas que, assim como eu, incentivam o alargamento dos limites entre teatro, artes plásticas, música, literatura.

Faz parte disso levar o teatro para ser desconstruído em outros espaços, ou construir dramaturgia a partir de textos literários. Procurei sempre manter um diálogo vivo, permanente, nem sempre tranquilo —afinal, em conversas, é frequente que haja fricção— entre as artes.

Fiz uma peça dirigida pela Malu Galli, "A Máquina de Abraçar", em um espaço cênico criado pelo artista plástico Raul Mourão; na "Gaivota", adaptação de Tchékhov pelo Enrique Diaz, o cenógrafo era de Afonso Tostes, também artista plástico.

E em "CérebroCoração", meu trabalho mais recente, havia uma aproximação muito curiosa com as artes visuais, tanto por conta do cenário como pelo próprio discurso do espetáculo, bastante calcado na pintura, no espaço, no corpo em movimento. Isso chegou a ser até mais presente na dramaturgia do que o texto.

A obra do Leonilson foi essencial na construção dessa dramaturgia: fez parte do centro nervoso, da coluna vertebral da peça desde que começou a ser escrita. Trabalhei nesse texto durante vários anos, às vezes sozinha, às vezes com colaborações de Enrique Diaz e Renato Linhares, diretores da peça.

É uma peça que fala da ciência, mas do ponto de vista do sentimento. Fala da razão a partir da perda da razão —seja pela doença, pela exceção, pelo remédio. O trabalho do Leonilson me guiou, estava sempre presente e quase esteve no próprio palco.

Ele é uma referência fundamental para o exercício de colocar os pensamentos do coração para fora. Seu material é autobiográfico, funcionando como um lugar onde o artista expõe a si mesmo e a época em que está vivo. 

Uma marca da obra de Leonilson é colocar sua personalidade às claras e circunscrevê-la a um trabalho de profunda delicadeza; ele transforma a exposição extremamente pessoal do autor em arte.

Desde os anos 1990, tenho uma relação forte com o trabalho do Leonilson. Nessa época eu integrava o Teatro da Vertigem, e o grupo procurava se abrir a novas referências culturais e criar o texto a partir daquilo que reverberava em nós. Buscávamos falar de um lugar de exclusão, onde se colocam vários grupos como as mulheres, os negros, os índios.

Nesse momento, construí uma personagem que era uma prostituta portadora do HIV, e a obra do Leonilson me sensibilizou de diversas maneiras. Não só me ajudou a compreender essa personagem como também muitas outras que fiz à época.

Lembro que por volta desse tempo o crítico Adriano Pedrosa escreveu, em um catálogo chamado "São Tantas as Verdades", a história de quando ele viu uma obra do artista intitulada "Voilà Mon Coeur", composta de restos de candelabros. 

pingentes de vidro pendurados
"Voilá Mon Coeur" (c. 1989), de Leonilson - Edouard Fraipont/Projeto Leonilson

Ela estava exposta com marcas que indicavam que o trabalho tinha sido vendido; então o crítico provocou o artista, perguntando qual era a sensação de colocar o próprio coração à venda. Leonilson disse que, apesar de doloroso, era o que artistas faziam; era como se não houvesse outra saída. Pedrosa contou que, alguns dias depois, recebeu uma obra de presente por Sedex, com uma anotação do autor afirmando que o coração dele lhe pertencia e que ouro de artista era amar bastante.

Eu sempre me lembro desse aviso final e procuro ter isso como norte, não deixando qualquer freio —seja intelectual, racional, político—​ segurar o desejo mais genuíno de deixar-se atravessar pelo amor à verdade.

Essa inspiração segue comigo estes anos todos, há mais de duas décadas. É um mantra que repito para recordar um posicionamento artístico que, embora seja muito radical, é também muito amoroso; e que, apesar de doce, é repleto de pungência.


Mariana Lima é atriz  e dramaturga; sua peça "CérebroCoração" está em cartaz no Teatro Poeira, no Rio, até 16/12.

Depoimento a Walter Porto.

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