[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte de "Lá Não Existe Lá", estreia na ficção do autor americano descendente de indígenas, que a Rocco lança neste mês. A narrativa apresenta o olhar de diversos personagens considerados "índios urbanos" na Califórnia, que se congregam em um grande evento.
Fazer com que parássemos nas cidades deveria ter sido o último e necessário passo para nossa assimilação, absorção, apagamento, culminância de uma campanha genocida de quinhentos anos. Mas a cidade nos refez, e nós a tornamos nossa.
Não nos perdemos em meio ao alastramento de altos edifícios, o fluxo das massas anônimas, o alarido incessante do tráfego. Encontramo-nos, fundamos Centros Indígenas, trouxemos nossos parentes e powwows, nossas danças, nossos cantos, nosso artesanato com miçangas.
Compramos e alugamos imóveis, dormimos nas ruas, sob autoestradas, fomos à escola, alistamo-nos nas Forças Armadas, povoamos bares indígenas no Fruitvale de Oakland e na Missão de San Francisco.
Vivemos em favelas em Richmond. Fizemos arte e fizemos bebês e fizemos caminhos para que nosso povo pudesse ir e vir entre reservas e cidades. Não nos mudamos para as cidades para morrer. As calçadas e as ruas, o concreto absorveram o nosso peso.
O vidro, o metal, a borracha e os fios, a velocidade, as massas avançando às cegas —a cidade nos acomodou. Não éramos mais Índios Urbanos. Isto era parte do Ato de Relocação Indígena, o qual integrava a Política de Terminação Indígena, que era e é exatamente o que soa ser.
Ficamos porque a cidade soa como uma guerra, e não se pode abandonar uma guerra depois de se estar numa, pode-se apenas mantê-la a uma certa distância —o que é mais fácil quando se pode vê-la e ouvi-la nas proximidades, aquele metal veloz, os disparos constantes a seu redor, veículos subindo e descendo as ruas e autoestradas como balas.
A quietude da reserva, as cidades às margens das rodovias, as comunidades rurais, esse tipo de silêncio só torna ainda mais pronunciado o barulho do seu cérebro pegando fogo.
Agora muitos de nós são urbanos. Se não porque vivemos em cidades, então porque vivemos na internet. Dentro do arranha-céu de múltiplas janelas de navegador. Costumavam chamar-nos de Índios de calçada. Chamavam-nos citadinos, superficiais, inautênticos, refugiados sem cultura, maçãs. Uma maçã é vermelha por fora e branca por dentro.
Mas nós somos o que os nossos ancestrais fizeram. Como sobreviveram. Somos as memórias de que não conseguimos nos lembrar, que moram dentro de nós, que sentimos, que nos fazem cantar e dançar e rezar como o fazemos, sentimentos vindos de memórias que se acendem e florescem inesperadamente em nossas vidas como sangue que escorre por um cobertor de uma ferida feita por uma bala disparada por um homem nos atirando pelas costas para tomar nosso cabelo, nossas cabeças, por um butim ou só para se ver livre de nós.
Quando vieram atrás de nós com suas balas, não nos detivemos, embora suas balas se movessem duas vezes mais rápido que o som de nossos gritos, e mesmo quando o calor e a velocidade delas nos rompiam a pele, nos estilhaçavam os ossos, crânios, nos atravessavam o coração, nós continuamos, mesmo quando vimos estas balas mandarem nossos corpos voando pelos ares como bandeiras, como as muitas bandeiras e prédios que vimos serem erguidos no lugar de tudo o que antes era para nós esta terra.
As balas eram premonições, fantasmas de sonhos de um futuro duro e veloz. As balas continuavam depois de nos atravessarem, tornavam-se a promessa do que estava por vir, a velocidade e a matança, as duras e velozes linhas de fronteiras e edifícios.
Eles levaram tudo embora e trituraram até que virasse uma poeira fina feito pólvora, eles dispararam, triunfantes, suas armas no ar e as balas perdidas voaram para dentro do vazio de histórias mal-escritas e feitas para serem esquecidas. Mesmo agora, balas perdidas e consequências estão aterrissando sobre nossos corpos desprevenidos.
Tommy Orange é escritor graduado pelo Instituto de Artes Indígenas Americanas.
Tradução de Ismar Tirelli Neto, poeta e escritor.
Ilustração de Niege Borges, designer gráfica.
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