Nova peça de Samir Yazbek mostra ator dividido entre teatro e novela

Espetáculo do dramaturgo entra em cartaz na próxima sexta-feira (9), no Sesc 24 de Maio

Samir Yazbek

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte da peça "O Eterno Retorno", que estreia na sexta-feira (9) no Sesc 24 de Maio, com direção de Sérgio Ferrara. A montagem integra projeto Samir Yazbek - Textos Inéditos, que também terá leituras dramáticas, uma oficina com o dramaturgo e um debate que o reunirá com Aimar Labaki e Silvia Gomez em 1º/12.

 

NAMORADA - E lá em São Mateus?
ATOR - Que tem?
NAMORADA - Você não ia visitar aquele grupo de teatro?
ATOR - Agora vai ficar difícil, né?
NAMORADA - Faz tempo que a gente está para marcar um papo com eles, hein?
ATOR - É melhor esperar a novela acabar.
NAMORADA - Parece que você não está com muita vontade de ir até lá.
ATOR - De onde você tirou isso?
NAMORADA - A periferia é muito longe, né?
ATOR - Está sendo irônica?
NAMORADA - Por que estaria?
ATOR - Aquele pessoal está com tanta pressa assim de me receber?
NAMORADA - Faz dois anos que você prometeu que daria uma palestra para eles.
ATOR - Por que eles não chamam outro ator?
NAMORADA - Você está falando sério?
ATOR - Qual é o problema?
NAMORADA - Eles têm a maior admiração pelo seu trabalho e você vem falar em outro ator?
ATOR - Admiração?
NAMORADA - Esqueceu como essa história toda começou?
ATOR - É claro que não.
NAMORADA - Você sempre inspirou aquele grupo de teatro.
ATOR - Eu sei disso.
NAMORADA - Eles foram assistir à sua peça mais de uma vez!
ATOR - Ainda bem que não foi essa última. (Um silêncio.) Será que não tem mais ninguém de confiança para ir até lá?
NAMORADA - Como assim?
ATOR - Alguém que possa me representar.
NAMORADA - Não seja ridículo!
ATOR - Aquele povo que circula pela periferia só quer saber de sugar o sangue daquela gente, não é verdade?

A Namorada e o Diretor se mostram indignados.

NAMORADA - Bom... Acho melhor eu ir embora.
ATOR - Já?
NAMORADA - Eu preciso trabalhar na minha tese.
ATOR - (Tentando seduzi-la) Dorme aqui hoje.
NAMORADA - (Afastando-se) Não posso.

Um silêncio.

ATOR - Que foi?
NAMORADA - Nada.
ATOR - De repente você ficou estranha.
NAMORADA - Você fala merda e não quer que eu fique estranha?
ATOR - Mas o que foi que eu disse?
NAMORADA - Você acha que eu quero sugar o sangue daquela gente?
ATOR - Eu não estava falando de você!
NAMORADA - Às vezes parece que eu não te conheço.
ATOR - Por quê?
NAMORADA - Parece que ninguém te conhece.
ATOR - Ninguém?
NAMORADA - O pessoal de São Mateus entrou numa furada.
ATOR - Como assim?
NAMORADA - Eu também entrei numa furada.
ATOR - Para de falar besteira!

Sai a Namorada.

ATOR - (Referindo-se à Namorada) Mas o que aconteceu com ela?
DIRETOR - (Aproximando-se do Ator) Você não sabe?
ATOR - Ela nunca falou assim comigo!
DIRETOR - E como você tem falado com ela?
ATOR - Bem que a minha mãe me dizia que eu nunca me casaria.
DIRETOR - Mas isso já faz tanto tempo.

Um silêncio.

ATOR - Por que você voltou?
DIRETOR - Preciso mesmo justificar uma coisa dessas?
ATOR - Você me ignorou por tanto tempo.
DIRETOR - Eu não estava muito bem da cabeça.
ATOR - Agora é fácil de falar, né?
DIRETOR - Você sentiu muito a minha falta?
ATOR - Pensei que fosse enlouquecer.
DIRETOR - Mas o teatro continua nos aproximando.
ATOR - O teatro não deixou espaço para mais nada.
DIRETOR - Será que agora não dá para conciliar as coisas?
ATOR - Você está falando do teatro e das mulheres?
DIRETOR - Talvez das novelas e do teatro.
ATOR - Tem certeza que isso é possível?
DIRETOR - Ou quem sabe das mulheres e das novelas.

Entra a Mãe, introduzindo o Plano da Memória, que se alternará com o Plano da Realidade e o Plano da Imaginação. O Diretor afasta-se do Ator.

ATOR - A senhora tem de entender que o teatro é a minha vocação.
MÃE - Que vocação é essa que não te dá um tostão, meu filho?
ATOR - A situação vai melhorar, mãe.
MÃE - Sabe desde quando você me diz isso?
ATOR - Hoje está bem melhor do que quando eu comecei.
MÃE - Você ainda conta moedas na minha carteira!
ATOR - A senhora leva esse tipo de coisa a sério?
MÃE - Vai completar quarenta anos de idade!
ATOR - Mania de ficar lembrando a minha idade.
MÃE - Até há pouco tempo você estava todo endividado.
ATOR - Eu prometo que isso não vai acontecer de novo.
MÃE - Você não percebe que essa vocação está te levando à ruína?
DIRETOR - (Para o Ator) Por que você está se lembrando de sua mãe agora?
ATOR - Foge do meu controle!
MÃE(Para o Ator) Não sei o que eu fiz para merecer tamanho desgosto.
ATOR - A senhora vai insistir no papel de vítima?
MÃE - Seu pai me deixou sozinha e olha só no que deu.
ATOR - Deu que eu estou me virando muito bem!
MÃE - Parece que você não está querendo enxergar a realidade.
ATOR - Que realidade, mãe?
MÃE - Como assim, "que realidade"?
ATOR - Qual é a realidade que eu preciso enxergar?
MÃE - A das pessoas comuns.
ATOR - Mas quem pode ser considerado uma pessoa "comum", hoje em dia?
MÃE - Tanta gente que acorda cedo para trabalhar, na maior dureza...

O Ator fica transtornado.

DIRETOR - (Para o Ator) Tente entender o que a sua mãe está te dizendo!
ATOR - Ela não cansa de repetir as mesmas coisas!
MÃE - (Para o Ator) Você é muito presunçoso.
ATOR - A senhora não tem o direito de falar assim comigo.
DIRETOR - (Para o Ator) Então a mande embora de uma vez!
ATOR - Eu não consigo!
DIRETOR - Ao menos procure se impor!

O Ator encara a Mãe com raiva, até que ela sai. O Ator relaxa. Alternam-se o Plano da Realidade e o Plano da Imaginação.

DIRETOR - (Aproximando-se do Ator) Você não cansa desses diálogos saudosistas?
ATOR - Não tem nada de saudosista aqui.
DIRETOR - E o que foi essa conversa com a sua mãe?
ATOR - Eu só estou me lembrando do meu passado.
DIRETOR - Você precisa se livrar desse passado!
ATOR - Você se acha mais "real" do que a minha mãe, é isso?
DIRETOR - Eu nunca quis me comparar à sua mãe!
ATOR - Pois saiba que ela é tão imaginária quanto você!
DIRETOR - Mas você não fará com que eu desapareça.

Um silêncio.

ATOR - Tem sido um suplício trabalhar com teatro neste país.
DIRETOR - O que não tem sido um suplício neste país?
ATOR - Eu só posso falar sobre as coisas que eu faço.
DIRETOR - Está na hora de pensar nos outros também.
ATOR - Parece que ninguém mais pode fazer isso.
DIRETOR - Essa é a tirania imposta aos artistas!
ATOR - A arte não interessa a mais ninguém!
DIRETOR - De onde você tirou um absurdo desses?
ATOR - Chega uma hora em que todos os que te ajudaram só querem ver você cair. Da noite para o dia, de "novidade promissora" você passa a ser um "artista ultrapassado".
DIRETOR - Você está com mania de perseguição.
ATOR - O que tem de amigo meu tomando outro rumo na vida.
DIRETOR - A questão econômica é outra conversa.
ATOR - Não há vocação que resista nessas condições!

Um silêncio.

DIRETOR - Lembra quando eu disse que você se tornaria um dos maiores intérpretes deste país?
ATOR - Como esquecer aquela entrevista que você deu à imprensa?
DIRETOR - E você acha que tem feito jus àquela previsão?
ATOR - Você deve saber mais do que eu a esse respeito.
DIRETOR - Ou acredita que já conquistou o seu lugar ao sol?
ATOR - Eu não conquistei merda nenhuma!
DIRETOR - Você não parece muito convencido disso.
ATOR - Deus sabe como eu tenho tentado melhorar como ator.
DIRETOR - Mas os resultados não têm sido muito animadores, não é verdade?
ATOR - O problema é que as pessoas com quem eu tenho trabalhado...
DIRETOR - Ah! Quer dizer que o problema são os outros.
ATOR - É triste que tanto esforço não tenha se traduzido em qualidade.
DIRETOR - Então você reconhece que não tem se traduzido em qualidade? (Um silêncio.) Você sempre busca soluções fáceis, travestidas de verdades profundas.
ATOR - É assim que você me enxerga?
DIRETOR - Está mais preocupado em impressionar os outros do que em descobrir a si mesmo.
ATOR - Você também voltou para me atormentar?
DIRETOR - Acha que Baudelaire irá salvá-lo das novelas?
ATOR - Mas quem disse que eu preciso ser salvo de alguma coisa?
DIRETOR - Ou que as novelas irão salvá-lo do teatro?
ATOR - Eu já tenho cinquenta anos de idade!
DIRETOR - E daí?
ATOR - Trinta anos de profissão!
DIRETOR - E continua encantado pelo decadente Baudelaire?
ATOR - Eu ando pelas ruas e ninguém me reconhece! Qualquer youtuber é socialmente mais importante do que eu! Não tenho dinheiro nem para trocar a minha geladeira! Isso é vida?

ilustração mostra ator em crise
Ilustração - Jaqueline Arashida

Samir Yazbek é dramaturgo, autor das peças "O Fingidor" (Prêmio Shell 1999), e "As Folhas do Cedro" (Prêmio APCA 2010).

Ilustração de Jaqueline Arashida.
 

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