Espírito da Constituição de 1988 está se degradando, escreve professor

Para autor, a Carta vem sofrendo com perda gradual, constante e profunda de autoridade

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Daniel Vargas

[RESUMO] A Carta de 1988 sofre com a perda gradual, constante e profunda de autoridade, segundo professor, para quem o constitucionalismo foi desencarnando do corpo da democracia ao longo dos últimos 30 anos.

Neste ano, o país celebrou os 30 anos da Constituição de 1988. A comemoração da democracia, contudo, chegou com gosto amargo. É crescente a percepção de que o Brasil vive crise profunda que se arrasta. 

O primeiro sinal foi a luta carnal entre os três Poderes, com a destituição de presidentes de dois deles, uma por impeachment, o outro por prisão. O segundo é a ascensão dos radicalismos de lado a lado, com propostas frequentes para se elaborar uma nova Constituição. O terceiro é a forma como o Judiciário se estapeia a portas abertas. 

Se individualmente estes fatos parecem problemas isolados, juntos revelam sintomas de uma doença menos compreendida: a degradação constitucional brasileira. Por degradação constitucional, eu me refiro à perda gradual, constante e profunda da autoridade da Constituição de 1988.

Na forma, a democracia parece saudável: temos eleições, votos, partidos, regras e juízes. Na substância, contudo, a alma do regime se degenerou. Como cupim em madeira, a superfície da democracia continua reluzente por fora, mas seu interior foi erodido. 

Compreender esse processo é passo central para o amadurecimento democrático do país. A primeira medida é uma releitura da evolução constitucional brasileira de 1988 a 2018. Em especial, explicar como o constitucionalismo foi desencarnando, passo a passo, do corpo da democracia ao longo de quatro períodos.

FUNDACIONALISMO (1988-2003)
O fundacionalismo é marcado por efervescência de aspiração cívica, traduzida em texto na Constituição de 1988. A constituinte conciliou interesses de grupos e lideranças emergentes. O saldo final foi um texto repleto de força, que orientou o pensamento e a prática das principais instituições nacionais. 

Os primeiros anos do novo regime foram marcados por grande fertilidade legislativa. Diversas normas centrais na vida brasileira nasceram nesse período: o Sistema Único de Saúde, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, a organização do Ministério Público, o regime jurídico eleitoral, a organização dos órgãos de controle e da própria Justiça. 

No pensamento, ganha espaço a “doutrina brasileira da efetividade”, que reconhecia a normatividade carregada da Constituição. O português José Gomes Canotilho, um dos pais intelectuais do projeto da “Constituição Dirigente”, reforçou a compreensão de que a autoridade da Constituição era identificada com o novo texto. Ao Judiciário, cumpria agora a tarefa de assegurar sua materialização. 

São frequentes as críticas à timidez do Supremo neste primeiro momento. O mandado de injunção foi reduzido a cinzas, em decisão que condiciona sua aplicação à regulamentação legislativa. Direitos sociais se convertem, pela interpretação judicial, em normas programáticas. O texto dirigente parecia mais dirigente para o Executivo e para o Legislativos do que para o Judiciário. 

Mas o aparente desvio de rota seguia também o mesmo padrão do fundacionalismo. Toda engenhosidade intelectual à época consistia em definir, a partir do texto, o que a norma constitucional significava.

CONSTRUTIVISMO (2003-2009)
Com a aposentadoria do ministro Moreira Alves em 2003, nasce um novo momento constitucional: o construtivismo. A fé dogmática na autoridade do texto constitucional é agora matizada pela ascensão da corrente intelectual conhecida como pragmatismo. Seu efeito imediato é deslocar a autoridade da Constituição do texto para a norma, uma abstração cujo significado precisaria ser construído in concreto. 

O pragmatismo reconstrói o constitucionalismo brasileiro. A norma constitucional, antes refletida no texto, agora extrapola o significado das suas palavras no dicionário. Para compreendê-la, é necessário mobilizar um conjunto de princípios racionais, latentes na cultura política e ponderados com maestria pelas mentes preparadas. Na ADPF 45 de 2004, por exemplo, o direito à saúde é garantido com base em princípios constitucionais.

Surge aqui um novo magistrado, em boa parte inspirado por tradição constitucional norte-americana. Antes um espelho da Constituição, agora ele se torna a ponte para a Justiça. Como em John Rawls, a deliberação da Suprema Corte é o referencial para toda a democracia. O ideal de integridade, para Ronald Dworkin, é a situação-limite da reflexividade judicial em uma democracia.

No Brasil, Luís Roberto Barroso lidera a conversão do constitucionalismo brasileiro do fundacionalismo para o construtivismo. Suas obras ajudam a treinar a nova geração de magistrados engajados. Ao decidir um caso, o juiz não está apenas a traduzir o sentido da norma. Sua ação contém inevitavelmente um resíduo criativo, ao mesmo tempo inafastável da prática judicial e necessário para o avanço da Constituição. 

No construtivismo, a Constituição passa a ser vista como o resultado cumulativo de processo de diálogo coordenado pelo juiz. Daí a importância crescente de se aplicarem os institutos do amicus curiae e das audiências públicas no processo de controle de constitucionalidade, fixados na Lei 9.868/99.

GERENCIALISMO (2009-2015)
O constitucionalismo brasileiro se transforma e se dilui uma vez mais com a chegada do gerencialismo. O gerencialismo incorpora princípios e ferramentas típicas da cultura empresarial —tais como missão, programas, metas e indicadores— e afirma a prioridade de um novo princípio geral da Justiça: a eficiência. A preocupação central do constitucionalismo agora é a gestão dos processos e o tempo da decisão.

As bases do gerencialismo se formam gradualmente. Em 1998, a Emenda Constitucional nº 19 introduz o princípio da eficiência no artigo 37 da Constituição, que dispõe sobre a organização da administração pública no Brasil. Essa nova orientação foi aos poucos assimilada pelo Executivo, mais que pelo Legislativo, e bem mais que pelo Judiciário.

A criação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), pela Emenda Constitucional nº 45, de 2005, é um marco no controle do Judiciário. Sua ação mais relevante, nos primeiros anos, consistiu em combater desvios morais na administração da justiça (Resolução nº 7 de 2005). O projeto Justiça em Números dá os passos iniciais para a criação de cultura de planejamento e eficiência nos tribunais.

A supremacia da cultura gerencialista no constitucionalismo brasileiro se concretiza com a aprovação, em 2009, pelo Supremo, do Planejamento Estratégico 2009-2013. O documento, deliberado pelo pleno, concede prioridade à gestão administrativa. Documentos anuais de prestação de contas passam a avaliar não apenas gastos, mas estoque e velocidade de decisão.

A partir de então, vai se disseminando pelo Judiciário o compromisso com os números e o tempo das decisões sobre tudo o mais. A eficiência é traduzida em ranking e vira critério de distinção entre bons e maus juízes na academia e no Judiciário. Ter o gabinete lotado de processos torna-se sinal de “má qualidade”.

A gestão passa a orientar reformas. Competências do plenário do Supremo são transferidas para as turmas, para agilizar o funcionamento da corte. Táticas rotineiras, como pedidos de vista, começam a ser escrutinadas publicamente e reguladas institucionalmente. Lideranças se sucedem na defesa de mudanças regimentais para fixar, com antecedência, a pauta de julgamentos.

CETICISMO (2015-presente)
Com o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o país ingressou em uma disputa ideológica que fraturou a base da democracia. O erro fatal foi flexibilizar o princípio número um do regime popular: a soberania do voto. O que se segue é uma desconfiança de lado a lado, que corrói a autoridade das demais instituições democráticas e dá origem ao ceticismo constitucional.

O traço distintivo do ceticismo é que as decisões judiciais já não são fundamentadas, mas explicadas à sociedade. O que orienta o regime não são razões constitucionais, mas a luta para definir o significado da “exceção”: a norma que vale em cada caso singular. O que justifica a exceção é a necessidade imperiosa de manutenção do regime.

O STF autorizou a prisão após a segunda instância, revendo posicionamento que prevalecia. Declarou a constitucionalidade da PEC 241/55, que fixa teto para os gastos públicos por um período de 20 anos, sem rediscutir a natureza das despesas. Por fim, limitou o exercício do direito de greve, determinando aos superiores responsáveis o corte de salários.

Individualmente, cada uma dessas decisões pode estar certa ou não. Mas não será porque o texto da Constituição de 1988 assim exige (como no fundacionalismo), porque os princípios constitucionais, como a dignidade humana, demandam (como no construtivismo), e muito menos porque nesses casos a eficiência constitucional era condição para funcionamento da Corte (como no gerencialismo). São as “circunstâncias” que assim exigem.

O direito e o Judiciário se misturam com a luta política aberta. Para quem sai ganhando em cada caso, a sensação é de alívio momentâneo. Para os demais, fica a imagem de um regime que não respeita pactos e em que os magistrados são soberanos. O direito já não é o texto, os princípios de Justiça ou a eficiência, mas apenas a política camuflada.

A DEGRADAÇÃO DA ESTRUTURA CONSTITUCIONAL
Para disfarçar a autoridade evanescente do direito ao longo dos quatro momentos constitucionais, criamos nossos meios: a transmissão ao vivo das sessões do Supremo, as citações numerosas de doutrinas importadas, os votos cada vez mais extensos e rebuscados. 

A autoridade do carisma, da ciência e do esforço funciona por um tempo, como um remendo. Mas não se sustenta para sempre. Quase todo regime decadente ou autoritário possui Constituição, juiz, regra, partido, voto, remendo e propaganda. Constitucionalismo, contudo, só democracias saudáveis possuem.

Se o tronco da democracia é corroído por dentro, vira matéria morta e pode sucumbir no primeiro temporal. Qual é o desafio do Brasil agora? Encontrar formas de reencarnar ou reconstruir, na madeira em decomposição, o espírito do constitucionalismo que se degradou.


Daniel Vargas, professor da FGV Direito Rio, é doutor em direito pela Universidade Harvard.

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