Descrição de chapéu Memorabilia

Estupro em Nelson Rodrigues foi o que vi de mais violento no palco, diz produtor

Paulo Pélico relembra sequência que o marcou em montagem de 'Toda Nudez Será Castigada'

Paulo Pélico

Na minha adolescência, em geral, menino de periferia tinha seu primeiro contato com a arte teatral por meio da escola. Éramos levados para ver espetáculos baseados em obras de José de Alencar e Machado de Assis, algo como uma extensão da aula de história ou de educação moral e cívica. 

Assim que completei 18 anos, fui assistir ao meu primeiro Nelson Rodrigues. Escolhi o insolente “Perdoa-me por me Traíres”. Subitamente, a luz sobe no palco e vejo prostitutas, rufiões, delegados, maridos traídos, uma mãe de família purgando desejos recalcados. Era como se nossas conversas de moleque tivessem subido à cena, trazendo com elas uma satisfação secreta.

Tempos depois, já profissional de teatro experiente, sem que a paixão pelo universo rodriguiano tivesse cedido um milímetro, fui ver “Toda Nudez Será Castigada”, numa montagem comandada por Cibele Forjaz e sua Cia. Livre, que trazia Hélio Cícero e Leona Cavalli à frente de um grande elenco. Eu conhecia bem o texto, tinha visto outras montagens. Portanto a expectativa não era pequena.

Ao entrar na sala em formato de arena, encontrávamos mobílias da década de 1950 espalhadas pelo espaço cênico, um lar de classe média carioca suburbano e conservador. Em um canto do cenário, era difícil ignorar uma banheira transparente de pezinhos, água pela metade, permanentemente iluminada, como se anunciasse algo. 

O enredo da peça se desenvolve em torno de Herculano, que após a morte da mulher se desinteressa pela vida. O estado do viúvo é tal que passa a preocupar as três irmãs que moram com ele, solteironas, beatas e dependentes do irmão mais velho. Terminam convencendo Patrício, o irmão caçula, a encontrar companhias femininas capazes de trazer um sopro de vida para aquele homem prostrado. 

Patrício apresenta ao irmão a prostituta Geni, mulher linda e estranhamente mórbida: vive arrebatada por fantasias de morrer de câncer no seio. A atmosfera funérea da moça cativa o viúvo, que acaba se apaixonando por ela. 

Os dois se casam, e Herculano a leva para morar no casarão. Serginho, filho do viúvo, não aceita a presença da meretriz no quarto da mãe morta —a crise emerge e consome laços, afetos e os últimos vestígios de bondade naquele lar. 

Se o texto não é um doce de coco, a diretora Cibele Forjaz não tardou a deixar clara sua falta de vocação para confeiteira. A cada confronto de personagens, era como se ela acendesse pavios de dinamite e os deixasse queimando à vista do público.

Depois de uma briga feroz com o pai, Serginho sai pela rua transtornado e perambula de bar em bar, numa noitada de bebedeira. Termina se envolvendo numa briga e é preso. Sem saber seu paradeiro, as tias passam a madrugada em vigília. Na manhã seguinte, da delegacia, chega a má noticia: durante a noite no xadrez, o jovem fora estuprado na cela por um dos detentos.

Em seguida, assisti à sequência mais violenta de que tenho lembrança em teatro: as três beatas cruzam o palco apressadas, em prantos, e vão diretamente a Herculano, que se põe de pé. Uma delas, com voz desesperada, anuncia que Serginho fora currado pelo Ladrão Boliviano.

As luzes do palco se apagam de estalo. Um refletor acende sobre a tal banheira e nela vemos Serginho submerso até os quadris, nu e pálido. Entre as coxas, tem um balão branco inflado, cheio de líquido vermelho. Imediatamente o balão explode e faz o público saltar no lugar. Com o corpo ensanguentado, o adolescente abraça os joelhos e entra num choro convulsivo. O vermelho tinge a água devagar, a luz morre enquanto ele soluça doído, num desamparo de dar dó.

Recordo-me do escuro e do espesso silêncio que baixou sobre a plateia. Permanecíamos todos imóveis ante a selvageria daquele estupro que de fato não vimos. Incômodo maior foi reconhecer que havia beleza naquilo. 

Naquela noite, o espetáculo da Cia. Livre selou minha convicção de que Nelson Rodrigues é nosso poeta dramático que mais se aproximou de certa ideia do Shakespeare brasileiro, pelo modo e pela profundidade com que penetrou na alma nacional. 


Paulo Pélico é documentarista e produtor de teatro.

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